ARDóSIA 10 : Mens sana

- Colesterol? Eu??

Gil desanimou. A cada três ou quatro anos faz exames rotineiros de sangue, e nunca apontaram nada. Agora isso. Nível 400 e tanto de colesterol, além de outro consideravelmente alto de triglicérides.

- Calma, senhor Gilvar. Não é grave, só precisa controlar melhor a alimentação e fazer caminhadas regulares – observou dr. Amílcar, há 30 anos médico do Posto de Saúde central de Ardósia.

- Rá! Aposto que diz isso a todos!

Uma semana depois, lá está Gil, prestes a iniciar suas caminhadas diárias no combate ao inimigo invisível. Deixou a rala barba crescer – só a barba, sem bigode, como um rabino – para deixar o visual “mais agressivo”, como explicou a Téo, que não deu importância àquela conversa esdrúxula sobre como enfrentar o “monstro do estômago”. Adiantava explicar que o problema do colesterol não estava no estômago? Não... então pra quê perder tempo?

Gil buscou na internet os melhores regimes e comprou toda indumentária ideal para caminhadas com saúde. Tênis maneiro, shorts irado e camiseta fresca. Era o que usava naquele sábado, saindo de casa em direção à pista do lago, o cartão postal da arejada cidade paulista de Ardósia. O enorme Lago da Pacificação tinha, ao seu redor, uma pista para cooper que, todos os dias, entre sete e nove da manhã e a partir das seis da tarde, ficava repleta de pessoas passeando, correndo, trotando... enfim, gente de todo tipo, com as mais variadas intenções. Isso nos dias de calor; no frio, ficava quase às moscas, limitada apenas aos atletas de plantão. Clube ao qual Gil era recém ingresso.

Os arredores da pista não são lá muito condizentes com a natureza ou o mundo esportivo; em seu quilômetro e meio, havia uma igreja evangélica, dois botecos, um galpão de indústria falida e uma agência bancária, além, claro, de dezenas de residências. Gilvar estava excitado, prestes a entrar no mundo saudável dos atletas. Te cuida, César Cielo! Em dois meses, no máximo três, estaria com barriga tanquinho, invejado pelos amigos e desejado pelas garotas. Estufou e peito, respirou fundo e colocou os pés na pista. De prima foi necessário desviar de dois corpos em alta velocidade. Duas crianças. Idônea perseguia Ilícito, aos brados de “eu te mato, moleque!”. Gil apenas observou com desprezo... sequer eram atletas, meros civis! “Crianças...”, pensou desanimado. Deu, então, os primeiros passos de uma nova vida.

O ritmo é forte. O médico recomendou iniciar com meia hora, mas naquela toada era possível caminhar por uma hora sem qualquer problema. Cruzou com diversas garotas que passavam bem mais lentamente, a maioria conversando. Passos lentos e conversa animada. “Esse povo não parece muito disposto ao exercício”, menosprezou em silêncio. Adotava, desde já, o desprezo pelos esportistas “de fim de semana”. Decidiu, então, acelerar o ritmo e iniciar uma corrida; diminuiria o colesterol muito mais rápido!

Havia diversos rapazes sentados na mureta que separa a pista do lago, alguns com o carro estacionado na rua, porta aberta e rádio ligado. “Tão pensando que é balada?”. Se assim pensavam, não eram os únicos. Kiara cruzou por Gil, conversando com uma amiga. Roupa de ginástica, mas forte odor de fragrâncias florais. “Não entendo, a gente vai feder de suor no fim da caminhada. O perfume não vai adiantar nada”. Caso Gil prestasse atenção na velocidade das garotas, perceberia que dificilmente suariam. Os sorrisos que escapam de seus rostos, cada vez que passam pelos rapazes, comprovam que realmente pertencem ao “povo que não parece muito disposto ao exercício”.

Outros personagens daquele mundo pseudo-saudável chamam a atenção de Gil. Laura, a ex de Téo, passou fumando... “Como é?”, pois é... “E eu pensando que já tinha visto coisa absurda em minha vida”. Não resistiu e, após cumprimentá-la, virou o rosto para vê-la por trás. “Não é que eu quisesse ver sua bunda, aliás cada dia mais gostosa, mas fiquei perplexo com o cigarro em plena caminhada!”; criou rapidamente essa desculpa esfarrapada caso Téo o flagrasse torcendo o pescoço por sua amada.

Finalmente completada a primeira volta na pista, Gil conferiu o relógio. Passaram apenas dez minutos... “Caraca, tô morrendo já...”. Decidiu diminuir o ritmo. Na verdade, as passadas já estavam mais lentas há algum tempo, sem sequer perceber. Pouco depois, vê outro corpo feminino à sua frente, indo no mesmo sentido que o seu. “Bumbum redondinho também, mesmo magrinha”. Então reconheceu Tânia; fechou a cara, não gostava daquela garota, que falava ao celular, ria alto e dizia não acreditar em alguma coisa. Ao ultrapassá-la, ficou pensando se haveria mais alguém em Ardósia, além dele, que faria caminhada – agora corrida - pelo exercício, pelo prazer de entrar no saudável mundo dos atletas.

Sentia-se superior, mas o fôlego faltava até para raciocinar melhor. Até sua audição começava a falhar... afinal de contas ouviu um “sua bicha!”. Quando o simpático chamamento repetiu-se, viu que Roni bradava do outro lado da rua, sentado na mesa do bar.

- Para de viadagem e vem tomar uma breja comigo!

Gil pensou na saúde. Olhou para os rapazes que paqueravam as moças perfumadas. Observou os passantes ao celular. Repousou as mãos nos joelhos, buscando mais fôlego no fundo do peito. Em seguida postou-se ereto e ameaçou seguir caminhada. Deu um giro e atravessou a rua. “Os médicos exageram com essa história de colesterol”, convenceu-se enquanto senta ao lado de Roni, com um enorme sorriso no rosto, mas sem fôlego para uma palavra.

Nichollas AIberto
Enviado por Nichollas AIberto em 30/07/2012
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