ARDóSIA 09 : Delivery

Apesar da crise – toda conversa, notícia ou história começa hoje com “apesar da crise” ou “por causa da crise”, sem comentar o “ao carai com a crise!” -, Jesuíno pensava em maneiras de incrementar seu estabelecimento comercial (como chamava o barzinho, mais conhecido como “Boteco da Evandra”). A mais recente criação é o sistema “delíveri” ou “disk bebida”. Basta telefonar e em pouco tempo a cerveja, a pinga ou o refrigerante, o que fosse, estaria na casa do cliente (como chamava os pinguços do boteco).

Naquele dia a coisa apertou, as novidades exigem período de adaptação... Jesuíno fazia duas entregas e sua esposa Evandra, a “verdadeira” dona da birosca, passou a incumbência de encaminhar duas cervejas aos filhos. Pois é... cervejas! Para sorte de Eva, não há Conselho Tutelar no pequeno município de Ardósia.

- Vocês escutem bem! Levam as duas cervejas para a casa do “seu” Ariosto e, na volta, passam na dona Mirtes pra pegar o dinheiro que tá devendo. Ela ligou e disse que pode passar; a grana já tá separadinha pra gente. Mas é ir num pé e voltar no outro! Quebro a cabeça dos dois se inventarem de demorar mais do que precisa!

O rechonchudo Ilícito, 10 anos, concordou de cabeça baixa. Sempre obedeceu os pais, com respeito e educação. Sua timidez agradava as tias. O mesmo não ocorria com a magrinha Idônea, um ano mais nova. Espivetada como só ela! Não era das mais católicas na obediência paterna e o apelido mais carinhoso recebido das comadres era “pestinha”. Também concordou com a mãe, mas foi com um “Ah, tá bão mãe! Que saco, sempre igual!”.

Foram caminhando, lado a lado, pelas estreitas calçadas do bairro. Idônea decidiu parar no jornaleiro para ver as capas das revistas.

- A mãe vai dar um couro na gente...

- Ih, garoto... vira homem! É rapidex! Só quero ver o que vai acontecer nas novelas.

Idônea observava as publicações, enquanto Ilícito permanecia de prontidão, preocupado com uma pouco provável, mas catastrófica, aparição da mãe. Nenhuma das crianças parecia prestar atenção na conversa do Jeremias, o jornaleiro, com Bituca, o sorveteiro, que parou o serviço para “tirar dois dedinhos de prosa”.

- Tô seguindo teus conselhos, Jerê. Quero ler todos esses jornais que você vende, até o Tribuna de Ardósia!

- É importante, rapaz. Saber ler e escrever é imprescindível pra não ser tapeado no mundo de hoje. Tudo globalizado.

- Impress... Sei, é isso mesmo! Tô com aulas particulares com a fessorinha Eliete, anssim eu aprendo a escrever direito as palavras. Cê vai ver, faço até uma poesia pra Ritinha, com português correto e tudo!

- Assim.

- Falou alguma coisa, menina? – perguntou o velho vendedor de revistas.

- É “assim” que se fala.

- Assim como?

- Ele disse “anssim”, com “n”. O certo é “assim”.

Os dois homens olharam um pro outro, entre a indiferença e a impaciência. Na dúvida, Idônea voltou sua atenção às revistas.

- Bão, como eu tava dizendo, já fiz duas aulas. Sei que já tô falando menas errado!

- Pelo amor de Deus, tio. É menooooos errado! – A espivetada fez questão de enfatizar a letra “o”.

- Vocês dois vão comprar alguma coisa? Então vão passear, pirralhos!

Ilícito saiu com os olhos arregalados. Havia fúria além dos domínios de sua mãe! A irmã, porém, tinha apenas um sorriso maroto nos lábios. “Vamo logo”, sugeriu o gordinho.

Tocaram a campainha de “seu” Ariosto e foi o próprio quem atendeu. “Oi, crianças! A mãe botou vocês pra trabalhar?”, e caiu na gargalhada. Os dois pivetes sorriram com a simpática recepção. “Estão com sede? Venham aqui na cozinha; enquanto eu pego o dinheiro, vocês tomam uma água. Tá calor aí fora, né?”. O cara é simpático, mas “mão de vaca”, não podia oferecer refrigerante? Esse foi o pensamento do suado Ilícito. Enquanto tomavam água (“Tenho certeza que vi Coca no fundo da geladeira, aposto que era!” - o pequeno não se conforma...), presenciaram parte de uma conversa entre dois rapazes encostados entre a geladeira e o armário. Um deles parecia inconsolável (“Que cara de chorão... deve ser veado, igual os das revistas!” - imaginou a sedenta magricela). Mas quem falava era o outro:

- Olha, eu nunca te disse nada, mas a Laura reclamou uma pá de vezes que você era muito frio. Só dizia que gostava dela quando estavam sozinhos. Era só chegar alguém e você partia pra brincadeira, nunca fez um elogio sério. Mano, eu te defendia, mas a verdade é que eu nunca vi mesmo você fazendo um carinho em público. Só segurar na mão e olha lá!

- Puta merda, cara...

- Não tá vendo que tem criança aqui, meu? – Idônea repreendeu o rapaz tapando os ouvidos do irmão que, pela segunda vez, ficara com os olhos arregalados. Que mundo é este? Enfim, os adultos seguiram falando.

- Puxa, Gilvar, não é bem assim. E mesmo que fosse, é motivo pra terminar um noivado? Um noivado de quatro anos!

- E que ainda não tinha data do casório...

O chorão ficou com os olhos lacrimejados, fitando fixamente o amigo conselheiro. Será que ele tinha razão?

- Téo, é claro que se você fizer uma força, ela volta. Esse lance entre você e a Tânia...

- Não teve nada entre a gente!!

- Que seja. Essa confusão foi só a gota d’água. Ela vinha acumulando alguns desgostos, mas acho que ainda tá apaixonada. Você tem é que provar que também está!

- Ela não atende meus telefonemas... não responde e-mails... Outro dia atravessou a rua quando me viu na calçada!

- E você não foi atrás?

- Fiquei sem jeito... Foi tão descarado o que ela fez... e tinha tanta gente olhando...

- Tu é leso, hein, cara? Toma atitude de homem! Atravessasse a rua gritando que ama! Fica aí chorando que nem vead... que nem bebê!

O “conselho” não veio do amigo...

- Ô menina! Tu tá fazendo o que aqui? Já bebeu a água? Cai fora, vai!

Saindo da cozinha, receberam o dinheiro pelas cervejas e rumaram à residência de dona Mirtes.

- Duas escorraçadas em dez minutos. Cê tá se superando, Doni!

- Não enche, moleque. Vê se vira um homem mais macho que aquele quando você crescer.

- Eu não quero nem saber de mulher... Vixi...

Diminuíram os passos quando passavam por uma casa antiga, toda pintada de rosa. Aquele endereço despertava curiosidade e apreensão na maioria dos ardosienses...

- Vamo, Doni (pra quem não percebeu ainda, corruptela de Idônea), não gosto dessa casa... Não é do marmitão?

- É ermitão, menino! É sim... Legal, né?

- Que quer dizer emitão?

- Sei lá... quer descobrir?

- Vamo embora!!

Apressaram novamente o passo e chegaram, após quatro quarteirões, na casa de dona Mirtes, coroa enxuta, viúva há dois anos.

Por sorte, ela estava na porta. Conversava com um homem estranho (“engraçado” era a definição de Ilícito), de terno (apesar do calor), cabelo com gel, óculos de aros grossos e voz empostada.

- Dona Mirtes de Moura Dota! Acredite no que lhe digo! Ardósia está caminhando para trás! Puro retrocesso! Com as proposta que trago em minha mente, galgaremos postos importantes rumo ao futuro!

- Ah, “seu” Alaor...

- Chame-me apenas de Alaor, por favor! A senhora verá! Passaremos a desempenhar um papel protagonista na história de São Paulo! E, por que não, do Brasil?!

- Mas o povo nem consegue achar Ardósia no mapa...

- É isso que eu quero mudar! Se um dia eleito for como mandatário maior do Executivo ardosiense, alterarei a história de nosso valoroso município!

- Assim conquista meu voto, Alaor... – o sorriso de Mirtes deveria ser o de uma eleitora convencida, mas beirava a amante lasciva. Empolgado com a visão, o candidato a candidato prosseguiu:

- Saúde! Educação! Segurança! Lazer! E combate à corrupção! Meu programa de governo terá cinco prioridades, dona Mirtes!

- A prioridade não devia ser uma?

Sim, obviamente, o comentário não foi de dona Mirtes. Ambos olharam para a garota que esperava pelo dinheiro.

- Mocinha, não lhe ensinaram a não se intrometer no assunto alheio?

- É que... se as prioridades são cinco, então nenhuma é prioridade, né? Se a gente analisar direito...

Dona Mirtes pagou o que devia para as crianças e colocou-as no caminho de volta para casa. Irritada com a interrupção inapropriada (“Pensando bem, ela tem razão...”, matutou decepcionada), resolveu abreviar a conversa com “seu” Alaor, que o arroz tava secando na panela. As crianças foram direto e reto de volta ao “boteco”. Até mesmo Ilícita estava cansada de tanta bronca. “Ô, povo irritadinho! Só porque sou criança não posso falar nada?”. O rol de irritados era mesmo grande. “Quem aquela menina pensa que é pra me chamar de frouxo?”, chorava Téo. “Garota metida! Si aparéci de novo, vai escuitá!”, exclamou Bituca. “Nossa, Doni. Não tá bom apanhar da mãe? Quer que a gente tome umas ‘piabas’ do povo na rua também?”, resmungava Ilícito no caminho ao lar. Mas ninguém ficou mais irritado que Alaor. Sozinho no carro, não dizia nada, apensa suspirava. E cada suspiro profundo significava: “Porra! Faz meses que não como ninguém!”.

Nichollas AIberto
Enviado por Nichollas AIberto em 30/07/2012
Código do texto: T3805534
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