ARDóSIA 07 : EntreLaços
O som vem abafado... quase surdo. Suficiente, porém, para despertá-lo daquela sonolência tediosa. Os olhos abrem devagar... Reconhece o quarto. Bem mais desarrumado que o normal, mas é ele. Estão a flâmula da seleção de 2002 e a capa de um LP dos Beatles, cada qual em uma parede, para confirmar a localização. Qual LP? Aquele com os quatro atravessando a rua, obviamente na faixa de pedestres: “Abbey Road”. Para quem não sabe o que é LP (Long Play, na língua do Obama), é o popular “disco” antes da invenção do CD. Não, meu caro adolescente, o CD não existe desde sempre!
Mas enfim... retornemos o novo episódio...
Além de seu próprio quarto, reconhece também o ruído. São socos surdos numa placa de madeira. Alguém bate na porta de casa. Teotônio se esforça e consegue sentar na cama. Lento, caminha pelo corredor; passando pelo espelho; percebe uma figura patética. Alguns sentiriam pena, outros dariam discretos sorrisos... era mesmo uma imagem ridícula. Barba por fazer, cabelo desgrenhado, olhos inchados, blusa amarrotada e a calça do pijama deixando aparecer meia cueca.
Indiferente à própria imagem, Téo abre a porta. É Ronildo.
- Véio, vim ver se você tá bem. Fiquei sabendo...
- Seu fêladaputa...
- Calma, irmão! Deu alguma confusão, algum fio trocado, mas a gente resolve!
- A gente o carai!
- Eu resolvo, véio, calma...
- Ah! Resolve mesmo! E não me pede calma porque eu te mato, seu filho de uma vaca prenha!!
- Peraí. Me contaram que você é que ia se matar. Não falaram nada de acabar comigo!
Em um segundo os olhos do moribundo arregalaram rubros e furiosos e suas mãos estavam no pescoço do visitante. No segundo seguinte, ambos estatelaram-se no chão.
Roni não conseguia explicar o que queria. Mal conseguia respirar, que dirá dizer alguma coisa! Não fosse a providencial joelhada entre as pernas de Téo e perderia os sentidos em pouco tempo. Ficaram então, de um lado, Téo contorcendo-se de dor; de outro, Roni recuperando o fôlego.
- Caraca, eu quero te ajudar...
- Só depois que eu te matar!
Percebendo a impossibilidade de um diálogo decente com o arruinado amigo, Ronildo promete que resolverá a confusão. Conversará com Kiara, explicando-lhe o que realmente ocorreu (“meu Deus, será que a garota não entendeu nada daquele dia?”) e ela, por sua vez, esclareceria a situação para Laura, a mulher por quem Téo ficara naquele estado deplorável.
No mesmo dia, à tarde, o tempo fervia no interior da EntreLaços, a simpática loja de lembranças de Ardósia. Além do sol escaldante do lado de fora, no interior uma pequena multidão olhava, tocava e comprava as bugigangas. Presente pra mãe, lembrança pra tia, afago pro namorado. Sábado era sempre assim, dia de maior movimento, para entusiasmo explícito de “seu” Ananias, que abriu o estabelecimento há dois anos, e desespero de atendentes e balconistas, que se consolavam pensando nas comissões.
Kiara, a “fofinha” ruiva por trás do balcão da esquerda, esforça-se para satisfazer duas mulheres, clientes afoitas atrás de produtos de couro. De repente, vê aquele rapaz cabeludo e magricelo entrando na loja, esgueirando-se entre as moças. “Não pode ser”, desanima. “Não hoje. Não no sábado, preciso dobrar a comissão!”. Sim, é ele, e nada o impediria de chegar até Kiara. No caminho de sua missão, variou entre o nervosismo e o constrangimento. Era muita humilhação conversar com a garota que riu de sua cara, à vista de todos os passageiros de um ônibus lotado. Mas a confusão com Téo era, mesmo que indiretamente, sua culpa, e ele era um de seus melhores amigos. Tinha que consertar o estrago.
De repente, o estalo. Uma segunda chance! Quem sabe, ela não se arrependeu do que fez? Numa dessas, abriria espaço para Roni mostrar seus dotes encantadores... Que sorte ter tomado banho aquela manhã!!
“Oi”, cumprimentou o Casanova tupiniquim; ignorado solenemente, viu-se obrigado a repetir o monossílabo duas vezes até Kiara, que olhava apenas para as duas clientes, resolver atender. “É comigo?”.
- Olha... desculpa aquele dia. Eu cheguei meio afobado...
- Bem afoito.
- Não. Minha voz é assim mesmo. Tava afônico não. Mas é que tô te filmando faz um tempo. Não tem muita ruiva em Ardósia. E só uma bonita.
- Como?
- Só uma. Você. Única ruiva bonita da cidade.
- Olha, tô ocupada pacas. Essa conversinha já deu! Vaza!
Percebendo que um jogo está perdido, Ronildo resolve salvar o outro, ou seja, fazer o que realmente precisava naquele dia: limpar o cartaz de Téo. Espera alguns minutos para Kiara resolver as compras das duas clientes, uma querendo bolsa e a outra, carteira.
- Dá dois minutinhos, só! Ó, aquele dia eu tava te paquerando, sim. Mas o meu amigo, o Téo, ele só tava ali porque pega aquele ônibus todo dia. A gente se conhece, então acho que ele ficou observando nossa conversa.
- Era só o que me faltava! Além de ter você no meu pé, agora tenho que saber de outro?
- É que a tua amiga, que tava com você, disse pra noiva dele que ele tava cantando ela. Com os olhos, sabe, tipo “olhar 43”.
Para demonstrar melhor a situação, Roni capricha no olhar, tentando pela última vez (será?) jogar um charme na garota.
- Nossa, se ele olhou assim, é pior que você!
- Bom, o negócio é que ele não queria nada com ninguém! Tua amiga vacilou!
- Querido, não tenho nada a ver com isso. É assunto dele com a Tânia. Eles que se virem. Eu não quero mais saber desse assunto. Tô fora!
Ronildo percebe que deveria procurar diretamente a tal Tânia. Kiara ao menos lhe contou que a colega não fora trabalhar naquele sábado. Algum problema estomacal, ficou em casa... A missão, agora, tinha outro endereço. Mas aquele “querido” ressuscitou esperanças...
- Tô indo, então. Mas antes eu só queria saber o preço de uma coisinha.
- Diz aí.
- Quanto pago por teu coração?
Uma bolsada na cabeça foi a resposta. Kiara teve que suar para explicar ao “seu” Ananias o motivo de agredir um cliente. Quase foi colocada no olho da rua. Mas só quase. Então, definitivamente, aquele prazer valeu a pena.