ARDóSIA 04 : Kiara
Ronildo estava decidido a conquistar Kiara, a jovem ruiva atendente de uma loja de lembranças. O problema é a falta de grana para um presente, para convidá-la ao cinema ou mesmo fazer charme em seu trabalho, adquirindo-lhe qualquer bugiganga. A estratégia de assaltar alguém se mostrou patética - embora tenha ganhado um amigo.
A solução encontrada foi esbarrar com ela na rua e aplicar o velho e bom carisma pessoal; esse, ao menos, foi o caminho mais barato que encontrou, embora sua eficiência seja temerária, conhecendo a perspicácia de nosso intrépido miserável. Passou uma semana estudando os passos de Kiara e decidiu que o melhor seria encontrá-la "coincidentemente" no ônibus que a traz do serviço para casa. Seria preciso, claro, conseguir o dinheiro para a condução; apenas uma, pois iria até o Centro a pé. Economizaria dinheiro e ganharia saúde.
O plano é perfeito, impossível não dar certo!
Colocá-lo em prática até que não foi difícil. Naquele dia, pediu ao chefe para sair mais cedo. “Caraca, nem percebi que cê tava aí. Pensei que tinha faltado! Pode ir...”. Não foi a mais simpática das dispensas, mas ao menor saiu da serralheria meia hora antes do normal, suficiente para chegar a pé até o trampo de Kiara. Depois de três quarteirões, porém, os músculos começaram a cobrar o preço de ficarem um dia inteiro em pé; o cansaço bateu forte. Decidiu, então, ficar no meio do caminho e pegar o ônibus por ali mesmo. Ainda teria tempo suficiente para “esbarrar” na musa.
Com coletivos de hora em hora, não era difícil saber em qual ela estaria. Quando avistou o “036 – Vila Paçoca”, deu o sinal. Encontrou Teotônio em pé, próximo ao cobrador. “Cê ficou sabendo do Gilvar no carnaval?”, “O quê?”.
- Pois é, foi pra casa com a maior gatinha. Mas aí quebrou a cara legal! E quase apanhou quando disse que não queria nada!
- Mané mesmo... Depois me conta melhor, tô com pressa, Téo. Preciso passar. Amanhã a gente conversa!
- Você pega esta linha agora?
Roni já não o ouvia. O ônibus estava cheio e seus olhos buscavam, entre sentados e em pé, o motivo de sua aflição. Então a viu. Os ruivos cabelos batiam nos ombros, a negra blusa emoldurava os seios e a calça jeans definia os largos quadris. Bota largos nisso, aliás!
Infelizmente estava no fundo do veículo; um oceano entre ambos. Ficou observando-a, torcendo para que os olhares se cruzassem, mas a garota parecia entretida na conversa com uma senhora. “Velha lazarenta”. Havia, porém, esperança de que o corredor esvaziasse antes dela descer. Aproveitou para pensar em assuntos para impressioná-la. A novela, o tempo, o pagode. Temas não faltavam, bastava aplicar o velho e bom charme.
Já planejava o trajeto para desvencilhar-se de dezenas de bolsas, bundas e mochilas, quando algo inesperado...
- Como assim, tá sem troco?
- Agora não tem. Se quiser esperar, fica aí ao lado.
Eram apenas 50 centavos... mas eram 50 centavos! Foram angustiantes segundos de indecisão, entre a moeda e a bela.
De repente, o olhar.
Foram dois segundos, mas ela fitou-o nos olhos! Virou o rosto, fez cara de quem não percebeu direito e olhou-o novamente. Ele, fixo em sua boca. Mais dois segundos... e ela retomou o olhar para o horizonte, através da janela do busão. Fez uma expressão no rosto... como era? Roni não conseguia decifrar. Sorriso ou desdém? Difícil... Além de tudo, misteriosa! Ele, definitivamente, estava se apaixonando.
Decidiu esquecer os 50 centavos, mas percebeu que ela se preparava para saltar. Tarde demais. Não chegaria a tempo. Lá descia ela... sorridente... esbelta... inatingível... Acompanhou-a com o olhar para ver ser se, na calçada, ela daria a última olhada em busca de seu rosto.
Nada.