ARDóSIA 02 : O larápio
Amanhece gelado na pacata cidade de Ardósia. Sair da cama com aquele tempo, em plena segunda-feira, é até maldade, mas Ronildo está acostumado. Com crueldades, não com o frio, nunca tolerado; trinca os dentes com qualquer ventinho. A melhor solução, ao menos a mais prática, é continuar com o pijama por baixo da roupa que vestiria. Não daria à brisa que ousa entrar pelas frestas da janela o prazer de apalpar-lhe as costas ou outros locais inomináveis.
Fez as contas. Considerando que usou o mesmo artifício no domingo anterior, na manhã de terça alcançaria 57 horas com o pijama no corpo. Será um recorde, não daqueles que se conta aos netos, mas definitivamente um recorde. Em pouco tempo, a situação da cueca seria dramática, mas, enfim, tinha amigos que ficaram com a roupa de baixo por até mais tempo. Um nojo. Mas o pijama... bem, tem até certo estilo. Ele tem classe.
Naquele momento, porém, há coisas mais importantes para se preocupar. Kiara. Nome exótico, curtos cabelos ruivos, sardas no rosto, finos lábios e um pouco acima do peso ou, como ele diz, “pronta pro abate!”. Desculpem, nem todos os habitantes de Ardósia primam pela sutileza...
Há dias – depois do “fora” que tomou de Antonina – imagina como conquistar a pequena ruiva. Sim, Ronildo deveria desconfiar que banhos ajudariam muito nessa empreitada, mas, como vêem, alguns habitantes de Ardósia acumulam grossura com burrice...
Como não seria diferente, chega ao trabalho com odor impecável. E insuportável. Na serralheria, porém, ninguém prima pelo perfume. Roni trabalha com desleixo maior que o habitual. Até seu chefe, sempre indiferente à falta de empenho, reclama. Mas o fedorento só tem uma coisa em mente. Na verdade, várias coisas, começando do dedinho do pé até chegar aos cabelos vermelhos.
No final do dia, em meio à serragem e ao pó, o alívio por mais um expediente completo, hora de varrer o galpão e voltar para casa.
Só que a angústia continua... Como chamar a atenção de Kiara? Um novo corte de cabelo? Melhor: esbanjar o velho charme na loja de presentes onde ela trabalha... mas como? Com que dinheiro? Seria perfeito presenteá-la com uma lembrança, fazendo uso de sua simpatia, encantando a moça. Em teoria, a prática era impecável. Com o dinheiro de seus bolsos, entretanto, nem um cartão postal seria possível. É preciso monetarizar a situação. E rápido!
Foi então que, no caminho para casa, encontra um rapaz desconhecido. Deve morar no outro lado de Ardósia, nunca o vira por ali. Melhor assim. Forasteiro não é, ninguém chega à cidade há umas boas décadas. Sabe-lá-Deus-o-motivo! Uma ideia canalha assaltou-lhe a mente: assaltar o pobre rapaz. Se tiver sorte, não seria tão pobre assim. A criminalidade em Ardósia é praticamente nula, mas atos como aquele mantém o “praticamente”. Ora, nem conhece o sujeito, deve ser da Zona Sul, provavelmente do Jd. Bufunfa, endereço dos endinheirados. E, se Deus ajudasse, em um encontro futuro poderia até devolver-lhe o dinheiro, caso o encontrasse de novo. E caso tivesse grana para reposição, claro...
Finalmente serviria para algo o canivete que carrega, até então utilizado apenas para abrir correspondências do chefe e limpar as unhas. Agora sim, utilidade pública!
- E aí, “brow”? Perdido no bairro?
- É comigo?
- Só tem nós dois aqui... e não falo sozinho, não dou doido!
- Perdido não... ainda não conheço bem... sou novo aqui. Mudei esta semana.
- Pois bem, “broder”, pode passar a grana que por aqui é assim que funciona! Passa tudo!
Como percebem, a inteligência foi mesmo cruel com Roni. Ele não queria alguém que morasse do outro lado da cidade? Tsc tsc tsc...
- Você não é irmão da Tamires? - pergunta a vítima.
- Cê conhece minha irmã, maluco?
- Sou Gilvar, teu novo vizinho... – respondeu sacando a carteira do bolso.
Ronildo fica olhando alguns segundos em silêncio. Depois do constrangimento inicial, o larápio pede desculpas, culpando a Dilma. Afinal, em última análise, é sempre culpa dela.
Entre futebol e mulheres, ficaram amigos. “Muy amigo”, pensariam alguns... Mas, enfim, amigos!