ARDóSIA 01 : Nomes

O tempo está feio. Nublado. Não ameaça chover, tampouco o sol dá qualquer pista de quando poderia brilhar. Assim é também a população da cidade: medíocre, no sentido mais puro, ou seja, mediana. Por mais que se busque, não será encontrado nenhum gênio; e o mais desbravador dos conquistadores penará para topar uma alma realmente má. Diga-se, má o suficiente para cometer um crime bárbaro, como assassinar os próprios pais. A verdade é que jamais houve um homicídio por ali. Há quem decrete: viver em Ardósia é chato! Discordam os conhecedores de suas histórias.

Nunca as ouviu? Não se sinta mal, não é o único. Ou a única, sensível leitora. Há registro de poucas testemunhas que ali estiveram... Quem é que sabe chegar lá? Sabe-se que Ardósia está perdida no interior paulista. E bota perdida nisso! O governo federal bem o sabe; nos últimos recenseamentos as equipes responsáveis pela contagem não a encontraram. Buscaram no mapa, foram pela rodovia Castelo Branco, procuraram pela Trabalhadores, tentaram por estradas vicinais... e nada. Inacreditável. O governo achou melhor ignorar o município e os censos deixaram de registrá-lo.

Ardósia tem esse nome por conta da pedra homônima e a óbvia previsibilidade. Pouco antes da inauguração do vilarejo, descobriu-se enorme quantidade do minério nas encostas e morros. No aniversário de dez anos, as autoridades ardosienses convidaram até “o pessoal da capital” para conferir e avaliar as riquezas naturais. Pouco após as festividades – repletas de representantes da sociedade militar, civil e religiosa –, os “doutores” revelaram não se tratar de ardósia as pedras que incrustavam a vila.

Constrangimento e assunto jogado debaixo do tapete.

O fato é que desde então há uma grande dificuldade em encontrar o caminho das pedras que, se não são ardósia, conduzem até Ardósia.

Ninguém faz muita questão de turistas por ali. O povo está bem e se basta. Os comerciantes, vez por outra, lamentam a pouca variedade da freguesia. Um dos mais tradicionais é o dono de um popular boteco no centro, ao lado da praça, a dois quarteirões da igreja. Como o movimento é pouco, a cabeça tem tempo para pensar bobagens, mas Jesuíno não tem qualquer inclinação à maldade e, por isso, esses disparates afetam apenas a si mesmo. E sua família. Como ocorrera alguns anos antes.

Inconformado com o próprio nome - e não lá muito feliz com o de sua amada, mas isso jamais admitiu em voz alta - Jesuíno queria caprichar no batismo de seu primeiro rebento, um menino. Durante a gestação, os pais travaram fortes discussões sobre o assunto; Evandra é do tipo que leva todas as situações com calma... até o marido inventar “suas doidices”. Ela olha torto, faz bico... então o marido extrapola e recebe um bule na testa.

Bem, Jesuíno queria um nome forte para o sucessor. A esposa não concordou com nenhum. Retirado das páginas policiais dos jornais, o obstinado esposo tinha seu preferido: Ilícito. Parecia até estrangeiro, meio italiano, sei lá! Aproveitou-se que Evandra ainda convalescia no hospital e foi registrar o garoto.

Um rádio estourado, dois pôsteres do “Curíntian” rasgados, três pratos quebrados e quatro pontos da cesariana abertos: eis o saldo quando, em casa, a desesperada esposa descobriu a artimanha.

Sejamos justos, Jesuíno arrependeu-se e prometeu - à enfurecida amada e a si mesmo - reparar o desencanto materno. No transcorrer da segunda gestação (uma menina), tocou-se pouco no assunto; a mãe definiu que seria Margarida e a cada "ahn" resmungado, soltava um olhar feroz selando qualquer discussão. Para Jesu, entretanto, em seu íntimo, concordar com ela era pouco... Era preciso fazer algo realmente grande, demonstrando que seu amor repararia aquele erro. Descobriu tardiamente que Ilícito significava "contrário às leis ou à moral", conforme o dicionário do vizinho bem alfabetizado. “Posso consertar isso”, raciocinou.

Seguiu a mesma estratégia, aproveitando-se da nova convalescença de Eva após o parto (não espalhem, mas no íntimo são “Jesu e Eva”. Parece meio incestuoso, mas é puro!).

Dias depois, todos em casa, a alegre mãe queria ver a Certidão de Nascimento da pequena Margarida. Ele soltou um frágil "ahn" e emendou "tenho uma surpresa, amor!", contando-lhe o verdadeiro nome da caçula: Idônea.

Dormiu um mês fora de casa.

Nichollas AIberto
Enviado por Nichollas AIberto em 22/07/2012
Código do texto: T3791410
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