DOMINGO DE MARIA
Seus olhos não piscam. Estão inundados na imensidão azul do céu. Sua consciência, subestimada pelos os que a cercam, parece estar perdida para além do universo onde nascem e morrem as estrelas. Poucas nuvens passam lentamente, para quem sabe, pelo quadrado da janela, cumprimentar aquela senhora deitada em sua cama.
Naquele instante, próximo dali, passou uma ambulância com sua sirene aos gritos e aquele som agudo desesperado causou certo desconforto naquela senhora que fechou os olhos e uma expressão sutil de dor tomou conta de sua face até que não se pôde mais ouvir as sirenes e ela voltou a olhar em direção ao céu.
Era domingo e escutavam-se pessoas na rua, crianças rindo e gritando – talvez estivessem correndo. Alguém gritou “duas alfaces e alguns tomates”, era voz de mulher. Uma leve brisa adentrou o quarto e um leve cheiro de frango assado alcançou a Dona Maria que chegou a acreditar que estava próximo da hora do almoço. Um frágil sorriso surgiu dando um pouco de cor ao seu semblante sofrido e triste. Era como se ela fosse levada ao passado e, de olhos fechados, recordava-se dos domingos em que ela mesma preparava o almoço para a família.
Lembranças foram quebradas com o rouco barulho de uma tosse seca – era Dona Rute que, com dificuldade, saia do quarto para ir até o pátio tomar um pouco de sol com os demais.
De olhos abertos – castanhos claros – tudo o que estava fora daquela janela parecia apenas sonho, nada era real. Uma lágrima escorreu. A solidão é dolorosa e vem acompanhada de fantasmas. Desde que fora internada pela sua filha caçula, há seis meses, Dona Maria não recebeu mais visitas. No primeiro mês, ainda conseguia caminhar, mas logo adoeceu e a ferida da sua perna, que passa a maior parte do tempo inchada, piorou. Por ficar muito tempo deitada e por não fazerem sua higienização adequadamente, ela está com outra ferida.
Naquele instante, Dona Maria lembrou-se da filha caçula, do filho mais velho que se mudara de cidade com a esposa e do marido que morrera de cirrose há alguns anos. De todas as lembranças e saudades, uma era mais dolorosa: a da filha. Dona Maria gostaria de entender o porquê de algumas coisas. Lembrou-se do dia em que queimou o braço com o óleo quente de uma das panelas que virara contra ela – estava preparando a janta de sua filha que logo chegaria cansada do serviço. A moça fora pra cima da mãe com raiva daquele descuido. Chamou a senhora de burra e imprestável. Dizia que chegava cansada do serviço e ainda tinha que socorrer velha teimosa. Dona Maria, por sua vez, queria dizer que estava apenas fazendo um arroz fresco, mas raramente lhe era permitido que terminasse suas frases. Qualquer um viria que ela estava em carne viva.
Aquela senhora chorava calada e apesar de tudo, gostaria que sua filha fosse vê-la. Quem sabe levá-la só para um rápido passeio pela avenida ou um pequeno sorvete. Imaginou que ela também estaria sentindo sua falta e pediu a Deus para que não a deixasse tão ocupada para que pudesse fazê-la uma visita de domingo. Logo, outra lembrança tomou conta:
Certo dia, já de noite, quando estavam as duas sentadas no sofá assistindo à novela, Dona Maria – que passara o dia inteiro sem falar com ninguém – quis saber sobre a filha que sem responder qualquer coisa fez apenas um sonoro shiii para que sua mãe não falasse mais. Às vezes, é mais forte do que nós e quando menos esperamos, queremos compartilhar algo com quem amamos. E naquele momento, mais uma vez, a ela foi pedido silêncio. Esperou então para falar quando estivesse passando as propagandas:
_ Hoje não tinha pão e nem bolacha. Fiz só um pouquinho de café porque o pó está acabando. Você pode...
_ Cacete mãe! Não vê que eu estou vendo TV. Não! Não tenho dinheiro. Já te dei cinqüenta reais semana passada.
_ Não minha filha, eu não estou dizendo...
_ Cala a boca! Não posso nem assistir em paz. Já passo o dia inteiro fora de casa com várias pessoas falando no meu ouvido e agora tenho que aturar a senhora.
Naquela noite, Dona Maria terminou de ver a novela sozinha. Via a televisão embaçada por causa das lágrimas que queriam escorrer, mas que ela não deixava. E perguntou-se como é que sua filha poderia tratá-la assim se era ela, apesar de toda dificuldade, quem limpava a casa, lavava a roupa, passava o uniforme de serviço e fazia a comida.
Hoje, muitas coisas ainda passam pela cabeça de Dona Maria que, deitada em sua cama sozinha com seus fantasmas, continua esperando a hora de qualquer visita. Mesmo as pessoas muito fortes não conseguem manter a força todo o tempo e aquela solitária senhora virou sua cabeça em direção à parede da janela e começou a chorar. Silenciosamente, ela desabou. Segurava os soluços, e a dor que sentia parecia querer saltar-lhe pelos olhos. Levou sua mão enrugada, um pouco áspera e tremula ao rosto. Nestas horas, ninguém sabe dizer exatamente do que sente vergonha.
Engoliu o choro, tentou respirar fundo e olhou pela janela. Um pássaro, talvez preto, parecia grudado com alfinete na nuvem que parecia um tufo de algodão colado na pintura azul. O pássaro voou: Para onde será que estava indo? O que será que estava procurando? O que será que encontraria no caminho? Essas foram as perguntas que Dona Maria fez a si mesma e desejou ser um passarinho e logo depois, disse que estava velha demais para voar, tão velha que ninguém a queria.
Queria levantar, pegar uma vassoura e fazer uma pequena limpeza naquele quarto. Já nem percebia o cheiro daquele lugar. Sentiu dor ao tentar levantar-se e se envergonhou ao perceber que estava usando fraldas. Encostou as costas novamente no colchão e sua ferida doeu: parecia queimar. Ficava muito tempo deitada com dor e em uma única posição e isso cansava muito e Dona Maria desejou que algum daqueles jovens que aparecem sem avisar, entrasse por aquela porta para ler um livro ou jogar conversa fora.
Já era quase três horas da tarde quando começou a sentir algo estranho e um pouco de dificuldade para respirar. Em um dado momento, ficou sonolenta. Conversou com Deus – uma conversa particular. Foi quando Dona Maria recebeu em sua janela, a visita de um beija-flor: azul, verde e um leve tom alaranjado. Escutava-se o forte-bater-de-asas-sem-parar e o brilho das penas e a mistura de suas cores com os movimentos quase hipnotizaram aquela senhora que, por alguns minutos, esquecera-se do desconforto da fralda, da dor e da solidão. Aquele delicado ser serenou o dia de Dona Maria. Ela, por sua vez, cochilou sem perceber olhando contente e atentamente aos movimentos, formas e cores da pequena ave.
Muitas coisas nesta vida ficam sem explicações e talvez seja melhor que não as tenhamos. É provável que aquela senhora tornou-se passarinho, quem sabe um beija-flor. Sem despedidas, Dona Maria deixou sua casca velha sobre a cama, e provavelmente, aceitou companhia para seu vôo solitário.
"Conto entregue no Centro de Educação e Cultura Francisco Carlos Moriconi em Suzano para o 8º Concurso Literário de Suzano. - Conto não premiado"