Coisas do Destino

O pequeno sino pendurado na porta toca quando esta é aberta pelo jovem de camisa azul listrada, acompanhado de seu amigo. O tilintar ressoa pelo ambiente onde eles estavam entrando, cuja decoração era composta por amuletos da sorte, livros espíritas e estatuetas pagãs que competiam espaço nas estantes com tantos outros objetos de muitos significados e efeitos sobre a vida das pessoas e seu futuro.

Os dois caminham um pouco hesitantes até um sofá perto de uma mesinha de centro em cima da qual havia uma pilha de revistas antigas.

- Você acha que isso seja mesmo necessário, André? – pergunta o primeiro de nome Samuel, que se esquivava automaticamente sempre que percebia que havia se aproximado demais de alguma coisa, como se tudo naquele lugar pudesse lhe morder ou lhe dá um choque se chegasse muito perto.

- É claro, Samuel – responde André – Você vai pedir Hanna em casamento?

- Sim.

- Então. É melhor ver como estar a sua sorte e perguntar ao astrólogo qual o melhor dia para fazer isso, considerando o seu horóscopo.

- Está bem. Mas que fique claro que eu não acredito nessas coisas. Só concordei em vir porque você insistiu muito.

- Eu sei disso, mas olha – André tira um folheto do bolso – Hoje é dia de promoção. Então, o quê que custa? – ele entrega para Samuel o folheto amassado. Nele estava escrito em letras garrafais e cores gritantes:

GRANDE BALTAZAR PEDRA AZUL

Desvende os segredos do destino e descubra o que o futuro lhe reserva com o grande adivinho, astrólogo e cartomante Baltazar Pedra Azul. Um poderoso e sábio médium conhecedor das artes antigas que lhe ajudará a compreender os ditames sobrenaturais que norteiam sua vida para que possa fazer as escolhas certas na hora certa.

Salão de consulta situado na Rua Benedito Palmo de Gato n° 012. O valor da consulta reduzido a um terço do valor habitual somente nesta quarta feira. Aproveite também para conferir os preços e qualidades de nossos artigos de simpatia e de decoração. Para mais informações ligue para o telefone abaixo.

Baltazar Pedra Azul

A oportunidade de conhecer o futuro.

OBS.: Não aceitamos cheques nas sextas feira 13 e noites de lua nova. Cartões de crédito também serão recusados se marte estiver em conjunção com saturno. Agradecemos desde já pela compreensão.

- É. Talvez você tenha razão. Não custa nada – disse Samuel devolvendo o folheto para André que o dobra e o põe novamente no bolso – Só lamento ter que faltar um dia de trabalho para poder vir aqui hoje e aproveitar essa promoção.

- É uma pena, realmente. Mas é um sacrifício necessário. Seu noivado agradece – disse André. Ele se senta no sofá e logo pega uma das revistas da mesa e começa a folheá-la. Diferente de Samuel que permanece de pé. Todas aquelas estatuetas esquisitas, líquidos em frascos pequenos e grandes, emaranhado de raízes pendurados no teto e velas plastificadas criavam um clima exotérico e sinistro que não deixava Samuel relaxar, muito embora ele dissesse que não acreditava em nada que envolvesse magia ou mal olhado.

Como que para disfarçar seu desconforto, ele cruza os braços e põe-se a olhar de um lado para o outro, como se estivesse apenas admirando a decoração.

A poucos metros de onde eles estavam, à direita de Samuel, havia uma entrada que era bloqueada por uma cortina azul estampada com desenhos dourados. Prestando mais atenção, Samuel percebeu que os desenhos se referiam aos signos do zodíaco. À esquerda dele uma grade fina e alta de arames em que estavam exibidos vários cordões, pulseiras, brincos e pés de coelho dividia o recinto em duas partes desde a metade até perto da porta.

De um lado desta grade, o lado oposta ao da porta, estava uma prateleira repletas de livros que iam de Allan Kardec à Dalai Lama, e é deste lado que sai repentinamente um jovem que usava o que parecia uma roupa indiana branca com detalhes em dourado.

- Boa tarde. Sejam bem vindos – ele falou com o sorriso mais amigável que pôde dar.

André se levanta do sofá de uma vez como se tivesse levado um susto. Ele coloca a revista de volta na mesinha e retribui o cumprimento.

- Boa tarde.

- Bem vindos ao salão de consulta de Baltazar Pedra Azul – disse o rapaz de túnica branca – Qual de vocês será o primeiro a falar com ele?

Samuel levanta a mão.

- Na verdade, apenas eu vim para a consulta. Esse é meu amigo André que veio só me acompanhar – Samuel falou se referindo a André que olhou o rapaz dos pés à cabeça.

- É você esse tal de Baltazar Pedra Rosa? – Ele pergunta.

- É Pedra Azul! E não sou eu. Meu nome é Dimitri, sou apenas o seu assistente.

- Assistente? Desde quando astrólogo tem assistente?

- Qual o problema? Astrólogo também é um profissional, e todo profissional pode ter um assistente. O médico tem o enfermeiro, o padre tem o coroinha, o cientista tem o assistente de laboratório...

- E o Batma tem o Robin – interrompe Samuel, o que por um instante irrita Dimitri, mas ele logo retorna ao sorriso forçado de antes.

- Pois é, mas você que vai falar com o Baltazar pode se dirigir à salinha de consulta. Ele já vai lhe atender – Dimitri fala apontando para a cortina azul – E você fique aqui fora aguardando – ele fala dessa vez para André que não vê alternativa para se mesmo senão se sentar de novo no sofá e pegar a revista que estava olhando.

- Vai lá Samuel. E leve a sério o que ele te disser. É para o seu bem – ele falou para o amigo depois que ele se virou para a entrada e deu dois passos em sua direção. Porém, um par de mãos abriu inesperadamente a cortina, o que fez Samuel parar no meio do caminho.

As mãos eram de um homem que aparentava estar na casa dos quarenta anos. Ele usava uma toga azul bordada com discretas linhas brancas que se curvavam ou se cruzavam formando padrões que davam acabamento à roupa. Seus dedos cintilavam com os anéis e para completar o figurino ele trazia na cabeça um ridículo turbante com uma pedra ametista roxa no meio. Diante daquela visão, André abafou um riso com a revista.

- Aqui estou. Baltazar Pedra Azul. Pronto para ajudar pessoas a descobri o seu destino e a guiar espíritos confusos. Quem será o primeiro a me acompanhar à minha câmara de consulta? – falou o homem quando se aproximou.

- Este aqui – falou Dimitri conduzindo Samuel para a sala além da cortina.

- Samuel, qualquer coisa pode gritar. Entendeu? Vou está aqui fora – disse André não podendo deixar de tirar sarro do nervosismo dissimulado de seriedade do colega pouco antes de entrar na tal câmara de consulta de Baltazar Pedra Azul.

A sala tratava-se de um cômodo de tamanho médio onde mais ao fundo havia uma mesa redonda com uma longa toalha de mesa da cor verde-lima que lhe encobria até aos pés. Nas paredes estavam pregados papéis grandes como cartazes e pôsteres com imagens e símbolos aparentemente impregnados de verdades ocultas e mistérios insondáveis para mentes comuns. Abaixo deles, consoles sustentavam mais objetos supersticiosos ao lado de algumas velas que estavam acesas apesar de a sala já ser bastante iluminada pela lâmpada fluorescente que pendia do teto onde estava desenhado o mapa das constelações. Um incenso no canto exalava um doce e forte cheiro que fez Samuel querer tossir.

- Então, meu caro. É você quem quer desvendar o futuro mediante a mim, não? – disse Baltazar se sentando numa das duas cadeiras que estavam ao redor da mesa.

- Sim, quero dizer, mais ou menos – fala Samuel se sentando na outro, de costas para a entrada.

- Mas diga. O que lhe aflige?

- Bem, é que vou pedir a minha namorada que se chama Hanna em casamento e meu amigo André acha que é bom consultar meu horóscopo para saber qual dia melhor para fazer isso.

- Hum, interessante. Seu amigo André tem razão. É preciso ouvir o que os astros têm a dizer. Mas como eu sinto que hoje é um dia auspicioso e vejo que você é um bom rapaz, antes de consultar o mapa astral vou tirar as cartas para você e não vou cobrar por esse serviço extra. Dimitri, por favor, as cartas – pediu Baltazar estalando os dedos.

Dimitri o entrega um baralho com o qual ele faz um leque.

- Vamos ver o que o destino reserva a você a ao seu noivado através das cartas. Elas não mentem. E o senhor...

- Samuel.

- Samuel. Você acredita que as cartas não mentem?

- Claro, elas nem falam, como é que elas vão mentir?

- Não diga asneiras e pegue logo uma carta – disse Baltazar estendendo o leque para Samuel – Se concentre, imagine coisas boas e as deixe conduzir sua mão.

Samuel fecha os olhos e tira uma carta aleatoriamente. Baltazar pega a carta e a posta virada para baixo na mesa.

- Outra, por favor.

Samuel tira outra carta da mesma forma e repete o processo outras três vezes completando ao todo cinco cartas que Baltazar põe na mesa uma ao lado da outra e viradas para baixo. Baltazar desvira a primeira.

- Eu não acredito! Você pegou essa carta? Hum...

- Sim. Por quê? O que foi? É ruim? Vai dar tudo certo? Eu vou morrer? – disse Samuel, amedrontado.

- Hã? Nada disso. É que faz muito tempo que eu não vejo essa carta e já pensava que a tinha perdido. Você sabe o quanto custa uma carta de tarô se eu tivesse que comprar uma nova?

- Isso não me interessa. O que eu quero saber é o que diz a carta.

- Há. Aqui diz que você vai morrer no ano novo atropelado por um trem.

- O quê?!

- Brincadeirinha!

- Por favor, mais seriedade.

- Está bem, vejo que você não tem senso de humor. Essa é a carta dos amantes. Ela indica o surgimento de um novo romance, o início de uma nova história de amor – informou Baltazar de forma solene.

- Parece bom agouro.

- E é. Vamos ver a próxima.

Baltazar desvira a segunda.

- Ai, não – ele falou balançando a cabeça em negativa.

- O que foi?

- É a torre. Ela significa uma situação conflitante, um rompimento. Geralmente o fim de uma amizade.

- Fim de uma amizade?

Mal Samuel termina a frase e André entra na sala agoniado, andando para trás e com a revista à altura do rosto.

- Opa, opa. Baltazar está ocupado, não pode entrar aqui – falou Dimitri se precipitando para André e o barrando.

- É urgente. Eu preciso falar com o Samuel – André falou cochichando, como se tivesse entrado em um dormitório e devesse falar baixinho para não acordar ninguém.

- O que foi André? Qual o problema? – pergunta Samuel se levantando da cadeira com preocupação.

- Dimitri, deixe o rapaz falar – disse Baltazar para Dimitri que larga André.

- Samuel, é a Hanna – André sussurrou para o amigo – Ela está lá fora.

- Essa não!

- É a ela que você quer pedir em casamento? – pergunta Baltazar para Samuel que colocava as mãos na cabeça sem saber o que fazer.

- Sim.

- Então, qual é o problema de ela está aqui?

- Ela não pode me ver aqui. Era para eu estar no trabalho agora. Não vai pegar nada bem para a minha reputação se minha namorada me pegar num cartomante, sendo que eu deveria estar trabalhando. O que as amigas dela dirão? O que a família dela dirá?

- Rápido Samuel – apressou André que agora observava a outra sala através de uma gretinha que faz na cortina afastando uma de suas bordas da parede – Ela já está aqui na sala atrás das pulseiras, olhando alguns livros. Se eu sair de fininho não vai dar para ela me ver. Agora para você não sei se vai dar tempo.

- E não vai dar. André, saia logo. Se ela o ver aqui, na certa vai saber que eu estou também. Eu vou dar o meu jeito de Hanna não me ver.

- Está bem. Boa sorte – falou André saindo de fininho com a revista escondendo parcialmente o rosto.

- E agora? E o que eu vou fazer? – disse Samuel, enquanto a cortina ainda balançava com a saída de André.

- Eu tive uma idéia – anunciou Dimitri.

- Qual Dimitri? – pergunta Baltazar.

- Por que Samuel não se esconde? Aí Baltazar atende logo a Hanna e ela vai embora.

- Boa idéia! Mas aonde eu me escondo? – disse Samuel olhando em volta. Aquele era um bom lugar para esconder segredos, mas não pessoas de um metro e setenta e cinco.

- Se esconde aqui em baixo da mesa. Ela não vai ver – disse Baltazar perto da mesa e levantando um pouco a toalha.

- Debaixo da mesa? Não tem um lugar melhor?

- Você quer ou não quer se esconder?

- Está bem. Parece que não tem outro jeito mesmo – falou Samuel. Ele entra para debaixo da mesa, ficando oculto pela longa toalha verde-lima.

- Dimitri, peça à moça que entre – falou Baltazar voltando para o seu lugar.

Dimitri sai voltando pouco depois acompanhado de uma linda garota de cabelos lisos muito escuros e pele muito clara. Ela vestia uma calça jeans colada e uma blusa preta sem decote, o que Baltazar julgou não combinar com a bolsa brega amarela que carregava, e o astrólogo se perguntou se aquilo não poderia significar uma maré de azar para a moça.

- Sr. Baltazar Pedra Azul? – ela falou.

- Sim, minha jovem. Entre. Vamos conversar.

A garota se senta na cadeira onde Samuel estava sentado e logo que faz isso, começa a fazer uma cara esquisita.

- Que estranho. Eu acho que chutei uma coisa fofa.

- Não é nada demais. É só uma coisa que eu estou guardando aqui debaixo da mesa para um amigo.

- Há. Sr. Baltazar...

Baltazar faz sinal com a mão para ela parar de falar.

- Não diga nada. Eu posso ver – Baltazar começa a olhar fixamente para ela – Eu posso sentir que o seu nome é Hanna.

- Nossa! É mesmo. Como o senhor sabia?

- Digamos que eu posso sentir as coisas.

- O senhor deve ser um adivinho mesmo.

- E sou. Eu tenho mediunidade, uma conexão paranormal com o cosmos.

- Eu acredito Sr. Baltazar, foi por isso que eu vim aqui. Tenho uma pergunta a fazer.

- E sobre o que seria?

- É sobre minha vida amorosa.

- Hum, não precisa falar mais nada. Deixe-me ver. Vou ler sua mão.

Hanna estende a mão com a palma virada para cima para Baltazar que começa a tocá-la com se estivesse lendo.

- Eu posso ver que você tem um namorado.

- Sim, tenho.

Baltazar continua a ler a mão de Hanna.

- E eu também posso sentir que... Deixe-me ver... O nome dele é Samuel.

- Exatamente! Você acertou em cheio.

Baltazar deixa passar alguns segundos como se estivesse com dificuldades e continua.

- Aqui diz que grandes surpresas lhe estão reservadas e tem relação com o seu namorado.

- Com o Samuel?

- Sim. É sobre um pedido muito sério que você terá que estar preparada.

- Nossa. Sr. Baltazar, você está vendo isso mesmo?

- Sim. Estou.

- Será que é para terminar o namoro?

- Isso você terá que esperar para ver. Mas não se preocupe. Eu sinto que não é para terminar o namoro. Ele a ama assim como você o ama.

- Na verdade, Sr. Baltazar, eu estou torcendo para que seja para terminar o namoro. Eu não agüento mais. O Samuel é muito chato. O homem é todo metido a certinho, não tem ambição, não tem ousadia. Sem falar naquela mãe dele que ninguém merece. É por isso que eu estou começando a sair com um amigo. Esse sim parece ser o homem ideal para mim. Ele é gentil, carinho e independente. Esse é o motivo de eu ter vindo aqui. Quero saber se tudo vai dar tudo certo na nossa história.

Quando Hanna termina de falar, Samuel solta um som de puro desgosto de debaixo da mesa. Algo parecido com um grunhido, o que deixou Hanna assustada.

- O que foi isso?

- Isso?... Há. Deve ser o Dimitri.

- Ele? – Hanna aponta para Dimitri que esteve o tempo todo ao lado de Baltazar. Ele pega no estômago como se realmente não se sentisse bem.

- É. Ele andou comendo umas coisas estranhas que é até melhor sair perto.

- Coitado – disse Hanna.

Dimitri faz sinal negativo com a cabeça como se desaprovasse o que Baltazar acaba de falar.

- Mas o que você estava falando mesmo, minha jovem?

- Eu estava falando que quero mesmo que Samuel termine comigo para eu ficar livre para um novo amor.

Tendo Hanna dito isto, Samuel se mexe irado debaixo da mesa, balançando-a.

- O que foi isso? – pergunta Hanna novamente assustada.

Dessa vez Baltazar não conseguiu pensar numa boa desculpa para dar, e nem poderia por a culpa em Dimitri já que ele tinha se afastado dele. Então, sem mais opções, Baltazar começa a dançar na cadeira, como um pai-de-santo recebendo um espírito em um terreiro.

- Sr. Baltazar, está tudo bem? – pergunta Hanna, preocupada.

Baltazar finge não ouvi-la. Ele continua dançando na cadeira pra lá e pra cá, mexendo e remexendo os braços.

Hanna se volta nervosa para Dimitri.

- Ele sempre faz isso?

- Só na quarta feira.

Baltazar de repente pára.

- Sr. Baltazar, o que isso significa?

- Isso o quê?

- Essa dança que você acabou de fazer.

- Há. É que... Bem... A minha conexão com o cosmos foi interrompida por um fluxo de energia negativa que passou por aqui. Assim, eu não vou poder adivinhar o futuro agora – Baltazar se levanta e vai conduzindo Hanna que também se levanta para a saída com a mão em seu ombro – Como por enquanto eu não estou podendo falar com o além, eu sugiro que você volte outro dia.

- Nada disso – fala Hanna tirando a mão de Baltazar de seu ombro e voltando para perto da mesa – Com todo o respeito, mas a promoção de só pagar menos da metade do preço da consulta só vale por hoje. Eu não quero ter que voltar outro dia e pagar mais caro. Além do mais, apenas hoje eu vou ter um folga da faculdade enquanto Samuel está no trabalho, assim ele não fica no meu pé.

- Mas Hanna, entenda.

- Com todo o respeito, mas não adianta insistir.

- Senhorita Hanna, por que você não espera lá fora um instante até que Baltazar se recupere?

- Dimitri! – bradou Baltazar para o assistente.

- Para mim está ótimo! Eu vou esperar lá fora, mas daqui a pouco eu entro de novo para continuar. Quero saber ainda hoje se meu caso com meu novo amor vai dar certo – disse Hanna pegando sua bolsa amarelo-hepatite e saindo cortina afora.

- Dimitri, você não poderia sugerir uma coisa melhor? – perguntou Baltazar depois que Hanna saiu.

- Pelo menos isso nos dar algum tempo para pensar.

Samuel sai de debaixo da mesa.

- Hanna saiu?

- Saiu – informou Dimitri.

- O que é isso de você está grunhindo feito um porco velho e se debatendo debaixo da mesa?

- A revolta. O que mais poderia ser? Como você ficaria se descobrisse dessa maneira que sua namorada a quem você ia pedir em casamento está te traindo com outro?

- Realmente, cara. Você deu um azar danado. – Dimitri lamentou o infortúnio do outro.

- É. Mas não vai ficar assim. Eu vou descobrir com quem ela está tendo um caso e dar o troco, e você vai me ajudar – Samuel falou apontando para Baltazar.

- Eu?

- Sim. Você. Eu quero que ponha as cartas e veja com quem ela está me traindo.

- Ué?! Mas não foi você quem disse que as cartas não falam.

- É. Mas agora eu acredito e quero que você veja isso para mim.

- Agora não vai dar. Baltazar recebeu um fluxo de energia negativa que interrompeu sua conexão com o cosmos – disse Dimitri.

- Não seja bobo, Dimitri. Eu só falei aquilo para Hanna sair.

- E foi?

- Foi.

- Enfim – continuou Samuel – Você vai me ajudar ou não vai?

- Bem, não sei se poderei adivinhar isso.

- Por quê? Você não é o Grande Baltazar Pedra Azul, cartomante e astrólogo? Pelo menos era o que dizia o folheto.

- Sim, mas...

- Mas o quê?

- Está bem. Eu vou chamar aqui a Hanna e vou ver se posso fazer com que ela fale alguma coisa a esse respeito, enquanto isso você fica escondido debaixo da mesa, ouvindo.

- Ótimo. Vou me esconder – disse Samuel antes de se agachar e voltar para debaixo da mesa.

- Dimitri, vá chamar a Hanna – falou Baltazar voltando a se sentar na cadeira onde estava.

Quando Hanna entrou de novo na sala depois que Dimitri a chamou, ela ainda mantinha a mesma determinação de prosseguir com a consulta. Talvez até mais do que antes.

- Então, Sr. Baltazar. Está melhor agora?

- Sim. E muito melhor.

- É impressão minha, ou eu ouvi várias vozes aqui? – perguntou Hanna enquanto se sentava.

- Era eu falando com as forças do além, agora minha conexão voltou com força total.

- Que bom.

- Então, senhorita Hanna, o que você quer saber mesmo?

- Eu gostaria de saber se tudo vai dar certo entre mim e meu novo amor.

- E como seria esse seu novo amor?

- Ele é um homem inteligente, romântico, simpático...

- Acho que você não entendeu. Eu quis dizer o nome dele.

- O nome dele é muito bonito.

Baltazar ajeita o turbante em sua cabeça para disfarçar sua frustração. Arrancar a verdade dela poderia dar mais trabalho do que ele imaginava.

- Senhorita Hanna, Baltazar fala sobre quem é o seu amante, quero dizer, o seu novo amor. O nome dele – Dimitri tenta intervir.

- Quer dizer que o senhor já sabe o nome dele? Nossa! O senhor é muito bom mesmo. Depois o bobo do Samuel não acredita em vidência. Claro! Mas também se o senhor não pudesse adivinhar nem o nome dele, seria uma tremenda fraude. Mas o senhor já adivinhou o nome dele assim como adivinhou o meu.

- Você acha?

- Sim. Seria uma fraude que eu faria questão de contar para todas as minhas amigas para elas nem porem os pés aqui. Caso fosse uma fraude, claro, o que não é. Pelos menos não parece ser.

- Acho que vou ter que adotar outro método – Baltazar pensou alto.

- Disse alguma coisa?

- Não. Nada. Só falei que vou adotar outro método, ou seja, dessa vez ao invés de ler sua mão eu vou tirar as cartas.

Baltazar pega novamente o baralho e o estende em forma de leque para Hanna.

- Pegue algumas.

Hanna pega algumas cartas e as entrega para Baltazar que as posta em cima da mesa.

- O carro – disse Baltazar quando desvirou a primeira – Essa carta significa ausência de obstáculos. Esse seu novo amor é dessa cidade?

- Sim.

- Parece-me que isso facilitará o seu romance.

- Ufa! Ainda bem.

Baltazar desvira a segunda.

- Esse homem é seu amigo. E só por curiosidade, ele é amigo de Samuel também?

- Sim. Ele é amigo do Samuel também.

- E você não se sente culpada por trair o seu namorado com o amigo dele?

- Eu não tenho culpa. Aconteceu. Além do mais, eu já estava pensando em terminar com o Samuel.

Baltazar resmunga alguma coisa e desvira a terceira carta.

- O fato de seu amante não gostar de música não vai ajudar.

- Mas ele gosta.

- Gosta? Quero dizer, é claro que gosta. É até de samba.

- Ele detesta samba. Ele gosta mesmo é de rock.

- Eu já sabia. Só disse para lhe testar.

- Está bem.

Baltazar desvira a quarta carta.

- Apesar de vocês dois morarem na mesma cidade, facilitando para ambos, o trabalho de seu amante poderá causá-los sérios problemas.

- Que bom.

- Que bom? Que bom por quê?

- Porque ele não trabalha.

- Há. Entendi – Baltazar desvira a quinta e última carta – O seu ex, ou melhor, o seu futuro ex fará alguma coisa de ruim com o seu novo namorado e você deverá tomar cuidado.

Hanna passa alguns instantes em silêncio e com a testa franzida como se estivesse refletindo, depois fala se levantando:

- Já entendi tudo!

- Entendeu? – Baltazar deixa de sentir as pernas por um momento. Ele podia até ver sua reputação sumir em um abismo de desconfiança e Hanna o rotulando de fraude para todas as pessoas verem.

- Sim – Hanna falou – O meu romance vai dar certo, eu apenas preciso tomar cuidado com o Samuel. Mas não se preocupe, eu falo com ele. Mas já está na minha hora, eu tenho que chegar à casa do Samuel antes que ele chegue do trabalho. Vou conversar com ele sobre isso. A te mais, Sr. Baltazar. Tenha um bom dia.

- Você também – falou Baltazar num suspiro de alívio.

- Vou lhe acompanhar até a porta – disse Dimitri saindo com Hanna. Pouco depois Samuel sai de debaixo da mesa limpando a calça suja de poeira.

- E aí, Baltazar? Como foi?

- Não deu para descobrir muito. Eu não podia simplesmente perguntar diretamente. Ela poderia desconfiar. Mas pelo menos sabemos que ele é desta cidade, é seu amigo e gosta de rock.

- Assim não dar para saber muito. Eu tenho vários amigos que se encaixam nessa descrição. Por que você não continua a tirar as cartas para mim para ver se descobre? Afinal, você é um cartomante, não é?

- Sim, claro – disse Baltazar claramente cético – Mas só mais uma – ele mistura as cartas do baralho e as entende para Samuel que tira uma.

- A lua – falou Baltazar olhando para a carta depois que Samuel lhe entregou.

- O que ela significa? – perguntou Samuel, interessado.

- Ela significa ilusão. O que não é o que parece. Algo feito para enganar, para tirar da verdade. Significa principalmente traição de pessoas próximas.

Samuel toma a carta das mãos de Baltazar e olha para o desenho do circulo prateado com um rosto acima de uma criança e de um rio.

- Traição? Para ser de um amigo meu, tinha que ser de um amigo muito próximo. Espere um pouco. Um amigo meu que mora na cidade, gosta de rock e que não trabalha só pode ser o... Ah, não. Não pode ser... Ou será que pode? – Samuel agia como se estivesse tendo uma revelação divina.

- A quem você se refere?

- Ao André! Hanna está me traindo com o André!

Samuel fica perturbado andando de um lado para o outro na sala e quase esbarra com Dimitri que acabava de entrar.

- O que foi que deu nele? – Dimitri pergunta.

- Eu tirei as cartas e ele descobriu que Hanna o estava traindo com o André.

- Aquele que estava aqui? Nossa!

- Ah, mais o André não perde por esperar. Eu vou pegar ele de jeito. Ele vai pegar muito caro por fazer isso comigo. Trazer-me aqui, fingindo ser meu amigo só para me ver pedir Hanna em casamento, sabendo que ela ia dizer não. Aposto que isso foi uma estratégia para eu não desconfiar dele, ele apenas não esperava que Hanna também viesse aqui hoje. Mas isso não vai ficar assim – Samuel falava saindo da sala de consulta.

- Realmente, o que esse cara fez contigo não se faz com ninguém – disse Baltazar que vinha caminhado atrás, pensativo.

- O que você sugere Baltazar?

- Como as cartas já disseram que foi ele, e você já sabe disso, quando você ver o André, não espere nada, pode partir pra cima. Senão ele só vai lhe inventar mais mentiras.

- Você quer que eu dê uma lição nele?

- Bem, não exatamente. Não me entenda mal...

- É isso mesmo que eu vou fazer – disse Samuel de punhos serrados, ignorando qualquer coisa que Baltazar pudesse falar – Não quero que ele minta mais para mim. Mas deixe-me ir agora, eu tenho um acerto de contas a fazer.

- Vá. E boa sorte – disse Baltazar.

- Boa sorte – completou Dimitri.

Samuel sai batendo a porta, enfurecido. Sua blusa listrada ondulando com o vento na rua. Cor sim, cor não.

- Baltazar, você acha certo o que aconselhou a ele? – perguntou Dimitri, depois.

- Claro! Afinal, eu sou o Grande Baltazar Pedra Azul, eu sei das coisas – disse Baltazar, enchendo o peito de orgulho.

Meia hora mais tarde, ele estava sentado no sofá organizando alguns panfletos que deveriam ser entregues na rua e Dimitri estava limpando uma estátua de Buda quando ouviram o sino da porta tocar. Quando os dois foram olhar quem era, viram André entrando.

- Ora, ora. Olha quem chegou Baltazar. É o traidor de amigos. – disse Dimitri.

- Pois se não é ele mesmo!

- Do que vocês estão falando? – perguntou André.

- Não se faça de desentendido, e não preciso consultar as cartas para ver que isso não vai acabar bem – falou Baltazar.

- Eu não estou interessado agora nesses agouros e previsões malucas de astrólogo, o que tenho para falar com o Samuel é muito sério. Ele ainda está aqui? A propósito, aqui está sua revista. Eu acabei saindo com ela na cara para Hanna não me ver.

- Você não viu o Samuel depois que saiu? – perguntou Baltazar, pegando a revista.

- Não. E queria muito falar com ele.

- Sobre o que é?

- Eu gostaria de falar apenas com o Samuel. É algo muito particular.

- Já sei. É sobre a Hanna e como o noivado dela não vai dar certo com o Samuel.

- Nossa! É mesmo. Às vezes esse negócio de vidência me assusta. Bem, já que o senhor já sabe, eu posso falar. Quando eu saí daqui, fui para uma lanchonete a poucas quadras de distância e lá eu ouvi uma conversa de que Hanna estava traindo Samuel com o Roberto lá nesse fim de semana.

- Roberto? Que Roberto? Eu achava que Hanna estava traindo Samuel com você.

- Comigo? – André se fez de ofendido – Imagina. Eu nunca faria isso. Ela está traindo ele é com o Roberto, um amigo nosso que é roqueiro. Por isso eu preciso encontrar rápido o Samuel para avisá-lo. Como ele não está aqui, vou continuar a procurá-lo. Até mais. – André vai saindo até que Baltazar que não estava com uma cara muito boa o chama de volta.

- André, eu posso prever coisas ruins para você. Ruins do tipo espancamento. Por isso, antes de se encontrar com o Samuel, esteja preparado. E lembre-se: errar é humano e se deve sempre perdoar os amigos.

- Está bem. Até mais – disse André abrindo a porta e saindo com uma expressão de quem não entendeu nem uma vírgula. Na verdade, estava mais confuso do que nunca com as palavras do astrólogo.

Depois que a porta foi fechada e o tilintar do sininho cessou, Dimitri se vira para Baltazar com as mãos na cintura e balançando a cabeça, desapontado.

- E você, Baltazar. Errou mais uma.

Baltazar Pedra Azul que não era santo nem nada, dar de ombros sem remorso. Só o que lhe restava naquele momento era falar o que sempre falava quando alguma de suas previsões saía terrivelmente errado:

- Não se pode adivinhar tudo.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 22/06/2012
Código do texto: T3737972
Classificação de conteúdo: seguro