O GRANDE MISTÉRIO.

O Grande Mistério.

GUEL BRASIL.

Essa história é deveras muito interessante.

Um caboclo nascido e criado lá pras bandas da Gruta, perdeu toda a família muito cedo; o pai, a mãe e os dois irmãos, ficando apenas ele como sobrevivente de um surto de febre tifóide que naquela época dizimou muitas pessoas da região.

Como não sabia ler nem escrever, o nosso caboclo não tinha nome, apenas um apelido, e sequer fora registrado. LOPE; era assim que todos o chamavam. Todos? Não se via uma viva alma no local, a não ser com uma ou duas léguas de distância.

Lope morava numa casinha feita de enchimento e taipa

de pilão, que fora construída pelo seu pai no tempo das vacas gordas. Quando o surto de febre tifo entrou porta a dentro no seu casebre, Lope, o pobre desajuizado não conhecia o poder da morte, e não entendia porque de uma hora para outra todas as pessoas que ele tinha aprendido a amar, estavam perdendo as forças, morrendo aos poucos, e ele nem sequer sabia o que fazer para ajudá-las.

Foram caindo um a um; o pai, a mãe e os seus dois irmãos.

Nenhum deles tinha o juízo no lugar certo, e ninguém soube me explicar porque motivo eles viviam assim tão separados do resto do mundo.

Um relato muito interessante é que Lope ficava sentado na soleira da porta, olhando para o nada e balançando o seu corpo frágil como um pêndulo, para a frente e para traz, para a frente e para traz, sem perceber que o tempo passava, sem se dar conta que a morte levara sua família, e que somente ele, ali naquele pedaço de mundo perdido no meio do nada, ainda estava vivo.

Dentro da casa todos estavam inertes, mortos, e cada qual no seu leito. Leito? Não eram leitos, eram camas feitas com forquilhas de madeira, varas, e um couro de boi que lhes servia de colchão. Aquele silêncio deixou Lope perturbado, e ele começou a chamá-los: pai? Mãe? Tonho? Salu? Ele gritou, balançou seus corpos e nada; o seu medo aumentou. A janela da pequena cozinha estava aberta, ele fechou, fechou também a porta; nos outros cômodos não tinham janelas, restando a sala com sua porta de entrada, Lope saiu e a fechou.

Sentou-se nos degraus feitos com pedras na frente da casa, e ficou ali como um pêndulo, balançando o seu corpo para lá e para cá, para lá e para cá.

As pessoas que passavam por ali de vez em quando, começaram a estranhar aquela cena. Cerca de quatro dias depois, numa manhã de sexta-feira, parou na frente da casa uma tropa, e a intenção do tropeiro era beber água, e dar um pouco de descanso para os seus animais. O menino Lope lá estava, no mesmo lugar de há quatro dias atrás. O tropeiro deu uma volta no entorno da casa, e através de um buraco na parede percebeu que havia um corpo inerte em um dos quartos; mal sabia ele, que ali havia quatro corpos já em avançado estado de decomposição.

O homem, então, tratou de montar em sua mula, chamou na

espora, e foi buscar ajuda no vizinho mais próximo, que ficava cerca de uma légua. Não demorou e a notícia se espalhou por todo o sertão, igual poeira soprada pelo vento.

Quando o sol já estava se escondendo por detrás das serras do grotão, muita gente já tinha chegado na casinha do Lope, que continuava no mesmo lugar, balançando como um pêndulo, e com os olhos parados na direção do nada.

Era impossível sepultar os corpos devido ao estado em que estes se encontravam. A solução encontrada foi atear fogo na casa, e tentar dar amparo ao único sobrevivente daquela cena, que cho-cava até o mais frio dos homens. E assim, mais rápido que pude-ram, tiraram uns poucos utensílios do casebre. Eram panelas de barro, uma mesa que estava no centro da sala, moringas e alguns potes de barro, e colocaram tudo no terreiro que tinha no oitão da casa. E fizeram o que tinha sido combinado. Atearam fogo na velha tapera. E quando procuraram o rapaz, o único sobrevivente da tragédia, só viram o vulto dele correndo estrada a fora na direção da Gruta, gritando como um desvairado que era.

O sol já tinha se posto, e a noite tomava conta daquele cenário tétrico, e de longe se avistava o clarão do fogo devorando tudo que havia dentro, e no entorno da casa.

Agora, Lope era o único herdeiro vivo, dono de uma faixa de terras, que se estendia da Gruta dos Lopes, fazendo divisa de aproximadamente uma légua com as terras da família Macário, no sentido oeste, o por do sol; e na direção da Serra do Ferrugem, fazia divisa com as terras de um grupo de quilombolas, que ali haviam se firmado lá pro meados do século passado.

As terras eram áridas, de vegetação rasteira e solo fraco, tão fraco que mal dava mandacaru, mas tinha água, muita água; nascia de dentro da Gruta formando um grande lago, que vertia por entre o cascalho do paredão, se enfiava dentro de uma abertura no chão da Gruta, e só Deus sabe onde essa água desaguava nova-mente.

Depois da morte de seus entes queridos, e por ter ficado sem casa, Lope passou a morar na Gruta; aos poucos foi recobrando a sua lucidez, e passou a ser o guardião do lago dentro da caverna. Recolheu o pouco que sobrara da tapera queimada e que poderia ser aproveitado, e levou para a caverna.

Passou-se o tempo, e aos poucos ele construiu uma casinha bem ao lado da antiga, talvez para ficar próximo da memória dos seus familiares. O lago da gruta era a única fonte de água potável que existia naquele lugar no raio de uma légua; e os moradores vinham se abastecer ali todos os dias ao cair da tarde.

E lá estava Lope, cobrando um preço simbólico por cada corote de água retirado do lago. O pagamento era feito em gêneros, porque Lope não conhecia dinheiro; então os moradores lhe traziam fumo, farinha de mandioca, feijão-de-corda e até bicho vivo, que depois ele soltava no terreiro da sua tapera. Não lhe faltava nada; sempre tinha o que comer, e não se preocupava em trabalhar para ninguém, assim como seu velho pai fazia quando vivo.

E o povo que vinha de muito longe pra se servir dessa água em pleno sertão, agradecia, porque Lope sabia como cuidar, manter limpo e conservado o tesouro que lhe dava o sustento. E tem mais, ele não aceitava um Deus lhe pague de ninguém, e costumava dizer com toda a sua insanidade: "Deus já tá deveno dimais, e eu nunca vi Deus pagano nada pa ninguém; nun trouxe hoje, manhã voismice trais."

E assim sua vida seguia. Lope era desajuizado e muitos moradores diziam que ele virava coisa ruim nos dias de lua cheia, mas a bem da verdade, ninguém nunca tinha visto.

Em frente a sua morada havia uma estrada boiadera, aqui conhecida com estrada real, e por ela passava de um tudo: carro-de-boi, tropas que vinham carregadas de mercadorias trazidas da cidade pro sertão, sendo que nos fins-de-semana e nos anos de política esse movimento era maior.

Quando Lope não estava na Gruta tomando conta do lago, costumava ficar sentado na soleira da porta da sua tapera, fumando um cachimbo de cano torto com fumo de rolo, e apreciando aquele vazio, de um silencio contagioso, e que às vezes era quebrado pelo canto triste das cigarras, ou pelo revoar das arribações em busca de água.

Desde que seus pais morreram Lope não fez mais barba e nem tão pouco cortou o seu cabelo; era rude com um bicho-do-mato, e não gostava que ninguém viesse visitá-lo ou entrasse na sua casa, que vista de fora dava pra se ver, estava sempre arruma-dinha com as poucas coisas que tinha.

Situações interessantes aconteceram com esse nosso caboclo, que era analfabeto, louco, mais muito inteligente. Esse era um ano de politica, e uma comitiva de candidatos, pensou estar perdida, e os pararam com seus cavalos em frente à casa do caboclo; e como de costume lá estava ele sentado na soleira da porta fumando o seu cachimbo. Lope não deu a menor importân-cia para as pessoa que acabara de chegar; um dos membros da comitiva saltou do seu cavalo e perguntou ao velho caboclo:

__"O moço pode me informar para onde vai essa estrada?" Lope calado estava, calado ficou. E novamente a pergunta:

__"O moço pode me informar para onde vai essa estrada? Lope le-vantou sua cabeça e respondeu:

__"Pá lugá niun dotô, pá lugá niun."

__"Como? O moço quer me dizer que essa estrada não vai pra lugar nenhum? Interpelou o politico.

__"Eu já disse pá voismicê, que essa estrada nun vai pá lugá nium"

repetiu Lope. Deu uma boa pitada no seu cachimbo, barrufou a fu-maça bem na cara do político e continuou:

__ "O dotô, com toda essa gentaiada ai, pode ir pá donde o dotô quisé, mas essa estrada vai cuntinuá ai, no mermo lugazinho que ela tá; o dotô vai, mai a estrada fica." Toda a comitiva caiu na gargalhada, e dessa vez em diante mudaram o jeito de formular as perguntas por aqui, sempre com um pé atrás.

Lope viveu por muitos anos com toda a sua simplicidade e falta de juízo; acabou morrendo sem deixar rastros nem herdeiros; como seu corpo não foi encontrado, dizem por aqui na região que o velho Lope não morreu, mas continua tomando conta da gruta e do lago dentro da caverna. Outros dizem que ele está seguindo as águas que entram no sumidouro, na esperança de descobrir para onde elas vão. A velha tapera onde ele morava continua lá, e muitos moradores afirmam já tê-lo visto sentado na soleira da porta, fumando o seu cachimbo de cano torto, e balançando o corpo pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, ............

E até hoje o mistério contínua, até hoje o mistério contínua; felizmente ainda estou vivo pra contar esse causo.

Guel Brasil
Enviado por Guel Brasil em 21/06/2012
Código do texto: T3736668
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.