O Pacto ( Primeira parte)

Eu tenho a felicidade de narrar esta história em primeira pessoa e ao longo do texto o leitor irá compreender esta especial deferência do universo.

Estava em meu consultório, na lida cotidiana, quando chamei o próximo paciente, o senhor Maurício. Não nos conhecíamos ainda, mas o contraste não poderia ser maior. Eu no meu auge de preparo, treinando para fazer a Volta da Pampulha e ele, um senhor distintamente amparado pela bengala , de um lado, e pela esposa, do outro.

A empatia é a liga que determina todo relacionamento que se inicia, da mesma forma que o preconceito funciona como um abortivo sentimental. Aquele primeiro contato não poderia ser mais difícil. Entrou em meu consultório um velho ranzinza e surdo, que reclamava de tudo, se exasperava facilmente. Respirei fundo e fui em frente, tentando ser o mais hipocrático possível.

Tinha à minha frente duas situações, um senhor gravemente doente, cujos detalhes médicos são irrelevantes no momento e um diálogo complicado, feito aos berros e sussurros conforme eu me dirigia ao paciente ou à esposa.

Confesso que não foi eu quem abril a primeira porta e sim o senhor Maurício, ao pedir desculpas pelo humor sombrio. Mas ele girou mesmo a maçaneta quando suspirou fundo e lamentou que não tivesse a força da juventude, quando fazia a Travessia dos Fortes no Rio de Janeiro, bem antes de ser uma prova famosa do calendário olímpico brasileiro. Foi ele quem deu o primeiro passo para sair daquela fôrma profissionalmente fria e segura que ameaçava tomar conta da conversa.

Daí a cair na armadilha do senhor Maurício foi somente uma questão de minutos. Usando a autoridade que a idade lhe conferia, 88 anos, ele inclinou-se um pouco e com um meio sorriso me disse:

- A única coisa que eu espero da vida, já que estou velho e doente, é poder completar 60 anos de casado com este anjo que muito suportou por minha causa e está aqui ao meu lado.

Tremi do outro lado da mesa. O caso era gravíssimo e ainda faltava cerca de dois anos até a data, em contar que eu estava não estava lidando com nenhum organismo jovem e do tipo auto-regenerativo. Mesmo assim fui em frente, aceitei o desafio de manter vivo o senhor Maurício, ou pelo menos foi isso que pensei na minha arrogância involuntária.

E mãos a obra, fomos trabalhando e fracassando, um dia de cada vez, mas o senhor Maurício se mantinha vivo o suficiente para me mostrar o seu verdadeiro senso de humor sarcástico, mas extremamente divertido, que deve ter causado furor na juventude. Eu torcendo para aqueles dois anos passarem depressa.

O fato por trás do fato, e mais aqui, mais uma vez, não interessam os detalhes técnicos, é que em um dado momento o senhor Maurício começou a melhorar, eu mesmo sendo apenas um mero espectador atônito dos acontecimentos.

Quando fez comigo o pacto, naquele dia, não estava falando comigo, falava além de mim. Eu não era mais que um canal através do qual ele dialogava com seu verdadeiro interlocutor. O Senhor Maurício fazia um pacto era com a Vida.

Finalmente chegou o tão esperado dia, não apenas para o Senhor Maurício e o verdadeiro anjo que era a Dona Benedita, mas também para mim que fui às comemorações convenientemente acompanhado por meu próprio anjo.

A missa ocorreu na capela da Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem e durante o ofício, não tirei os olhos do casal que ali completava 60 anos de um casamento sólido e exemplar, mas também dois anos de um milagre que ainda estava acontecendo.

Ao final da cerimônia, todos foram cumprimentar os noivos, mas o Senhor Maurício recebeu a todos sentado no mesmo lugar. Estranhei, pensei que ele quereria estar de pé e forte para receber os abraços da família e amigos, mas ele nem mesmo fez menção de erguer-se.

O médico que havia em mim inquietou-se, e também o espectador. Fiquei por último na fila dos cumprimentos e quando pude, inquiri sobre o que estava acontecendo.

O Senhor Maurício se aproximou mais, passou a mão no meu pescoço, rindo com a boca e com os olhos.

- Fica preocupado não doutor. A emoção foi tanta que eu me urinei todo...

Continua.....

Marcelo FAS
Enviado por Marcelo FAS em 01/06/2012
Código do texto: T3699274
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