" O CAÇADOR III"
 


     Hoje levantei cedo e sai meio torto ainda com intenção de pescar piaus num canto do rio dentro da mata onde ele atravessa. Um garoto boa praça e muito brincalhão que trabalha nas instalações do balneário disse-me para tomar cuidado por que na mata tinham sido visto onças, várias vezes.

     O tom de galhofa deixou claro que ele só estava tirando um sarro com a minha cara, logo em seguida ele pediu desculpas e claro que eu levei também na gozação, este é o exato motivo da minha estada aqui: relaxar e cuidar da coluna melhorando um pouco a saúde tentando perder uns quilos dos muitos que acumulei depois que resolvi trabalhar só para minha esposa que é tão boazinha e não manda nunca eu fazer nada a não ser tratar da cadela e de aguar seus vasos de flores que ela adora desde que eu cuide, e ai de mim se deixá-las secar.

     Sentado à beira do rio numa pedra grande e confortável eu instintivamente examinei com uma boa olhada os arredores, não por medo da onça, mas... Pescar é uma tarefa tão boa e absorvente que quem está praticando se esquece do mundo e seus problemas. Estava tudo calmo e mergulhei o anzol na água e fiquei na expectativa do beliscão do peixe. Em meia hora só um lambari apareceu e ficou roubando a isca, eu colocava e o ladrãozinho comia, por fim me cansei da brincadeira e finquei a vara de pescar na margem de barro mole e olhei novamente para a mata, nenhuma onça a vista.

     Ri da minha preocupação e meus pensamentos voaram para o passado e lembrei-me dos meus primeiros anos de trabalho, tinha sido contratado por uma empresa construtora de estradas e íamos fazer uma nova rodovia ligando a popular Rio Bahia à nova cidade do vale do aço chamada Ipatinga! A estrada atravessaria uma região de matas onde as fazendas ainda eram poucas, por que a maioria eram terras do estado. Era uma festa a grande e variada quantidade de animais silvestres, que víamos enquanto trabalhávamos.

     Eu sempre gostei de esculpir madeiras e o velho instinto do homem caçador, despertou em mim a vontade de fazer um arco de atirar flechas. Nos horários de almoço ou à noite a luz das fogueiras do acampamento eu trabalhava o artefato até que ficou pronta, uma beleza! Fiz algumas flechas e treinei até ser aplaudido pelos colegas devido minha boa pontaria.

     Eu estava tão bom que a diversão era alguém jogar um, objeto e antes que ele chegasse ao chão eu o atravessava com uma certeira flechada. Prontas as minhas armas, sai para a caça. Era dia do pagamento, que recebíamos no local de trabalho e quem recebesse não mais trabalhava, ficava aguardando o término do pagamento a todos os funcionários para então subir na carroçaria dos caminhões e viajar em estrada de terra quase quarenta quilômetros até D. Cavati cidade onde moravam quase todos os trabalhadores.

     Fui um dos primeiros a receber, meu trabalho era de apontador e isto me dava certas regalias que eu não dispensei. Então peguei meu arco coloquei as costas à moda do Tarzan pendurei o carcás de flechas e entrei na mata como se fosse o próprio. Atravessei um pequeno riacho e comecei a subir uma encosta bastante íngreme, depois saí num vale largo com uma pedreira alta de um lado e no sopé, a floresta era composta por árvores altíssimas deixando o chão coberto apenas com folhas mortas e ficando fácil para caminhar.

     Ouvi um farfalhar de folhas e apurei os ouvidos tentando adivinhar o que poderia estar fazendo o barulho que parecia uma luta. Empunhei o arco assestei uma flecha e sai com um passo de urubu malandro meio curvado e parecendo um índio com todos os sentidos em alerta e a adrenalina me levando ao mundo do imaginário, secando minha saliva e trazendo muitas emoções que já sentira, mas, não numa situação de solidão e onde era eu e a floresta numa comunhão única e que me fazia um rei de alguma coisa, já que é preciso pouco para um pobre se sentir rei.

     Uma enorme árvore caída destas que hoje só vemos em filmes com um tronco de mais de dois metros de diâmetro coberta de musgo aos poucos apodrecendo, estava atravessada no caminho e o barulho da luta estava vindo de detrás do tronco, dava para perceber o arfar dos bichos, eufórico eu subi ao tronco evitando qualquer barulho, quando consegui ver do outro lado não foi o meu corpo que esfriou, foi minha alma que congelou. Duas enormes panteras negras com cor viva brincavam como dois gatinhos, de rolar, correr e uma pular em cima da outra como se não existisse mais nada no mundo além delas.

     Não sei quanto tempo eu permaneci ali encantado com aquela visão que me assustava, mas ao mesmo tempo me atraia e não me deixava pensar em uma atitude, que seria sair correndo, o que talvez tenha me evitado problema maior, lembro-me que o vento soprava suave vindo do lado onde estavam às feras, pois se fosse diferente, elas já teriam me farejado.

     Uma catinga fétida dos bichos entrava pelas minhas narinas e eu fiquei morrendo de medo de espirrar, nestas alturas, já consciente da minha situação de perigo e pensando no que seria melhor fazer. Nisto, as brincalhonas onças resolveram acabar com meu medo e saíram numa louca disparada serra abaixo sem se dignarem a uma despedida nem mesmo com uma olhadinha, respirei aliviado e quando calculei uma distância de uns cem metros de afastamento das gatonas eu disparei pelo caminho de volta, engraçado que aí eu senti um pavor tal e tão grande que parecia que o bafo das feras estava na minha nuca e eu corria mais, sem coragem de olhar para trás.

     Atravessei um pequeno rio e do outro lado parei, agora não tem mais perigo, pensei... E enquanto descansava avistei já bem perto o acampamento, cheguei lá meio sem graça, o pessoal veio logo perguntando pela caça, eu olhava para eles e para o arco, fiz o que ninguém esperava, forcei o arco na coxa e com um golpe o quebrei, peguei o carcás de flechas e joguei numa ribanceira, e sem nenhuma explicação para ninguém, deixei de ser caçador, melhor ser pescador, eu heim?

     A vara está se mexendo, é o lambari. Pelo visto vou deixar também de ser pescador, lambari ladrão que continua me fazendo de bobo e comendo as iscas evitando comer o anzol. Acho que minha carreira de escritor de contos também vai pro beleleu, creio que vai me sobrar a coluna torta, e os anos que aumentam a cada quatro, caminhando junto com a copa do mundo e nós ainda ficamos torcendo para ela chegar depressa, “ô sina”. Até sexta se fizer sol e os pássaros cantarem...

Trovador
Trovador das Alterosas
Enviado por Trovador das Alterosas em 28/05/2012
Reeditado em 17/09/2018
Código do texto: T3692237
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