Café com trauma
Sai correndo apavorado.
E foi assim: Eu tinha meus 10 anos, talvez incompletos, mas lembro-me bem de muitas coisas da minha infância. Certa vez levei uma bronca da minha mãe ainda guardando resguardo de minha irmã mais nova, porque reclamei em altos brados da comida que a vizinha fez, muito ruim. Eu não tinha noção do que era uma pessoa prestar um favor e fui mal agradecido. Mas depois aprendi isso também.
Num dia qualquer, depois de ter espantado os cavalos do meu avô no curral nos fundos da casa onde morávamos, eu atravessei o quintal e fui ver minha avó pela qual eu nutria um carinho muito grande. Passei pela sala grande antes de adentrar-me ao ambiente do casarão da minha vó, pois ali ficava o meu tio Sinhô (assim nós o tratávamos) pois ele sofria dessa doença que antigamente a gente chamava de morfético e todos pensavam que era contagiosa e hoje isso se cura como se trata uma gripe. (A ciência contrariando Deus – Rssss). Mesmo assim, ele era muito alegre e viveu bastante tempo, mas pelo fato de ter se isolado e não fazer exercícios físicos, provavelmente foi embora mais cedo por causa disso.
Atravessei a varanda nos fundos, onde ele ficava e fui papear com vovó Marietta. Não me recordo bem, mas depois de um certo tempo, ela carinhosamente não me deixou ir embora e disse que ia preparar um cafezinho gostoso pra mim.
Era praxe e o fogão de lenha já estava aceso e eram aproximadamente umas 7 da manhã e a broa de fubá já estava na mesa, ali com aquele paninho branco de prato bordado por ela mesma com aqueles geométricos muito usados naquele tempo.
Ela colocou a chaleira com a água pra ferver, preparou o bule esmaltado e encaixou o coador de flanela bem limpinho e o pó de café que eu havia ajudado a torrar um dia antes naquela torradeira manual e que tem uma bola como se fosse uma bóia sobre o fogo. Tenho a impressão que hoje seria um saco a gente ter que passar por isso, conhecendo as prateleiras dos supermercados, onde a gente pega tudo pronto.
Foi então que eu tentei conversar com ela e ela emudeceu, parecia estar em outro mundo, saiu da cozinha, passou por mim na sala como se não me conhecesse e foi pro quarto e saiu de lá com o penico (pra quem não sabe, um vasilhame que ficava naquele tempo, debaixo da cama, pra gente urinar, pois os banheiros em geral não ficavam dentro de casa).
Quando eu pensei que ela ia jogar fora no quintal como sempre fazia, ela o despejou dentro do coador. Eu fiquei atônito, olhando aquela cena, não podia repreendê-la, pois o respeito estava acima de tudo, mas num repente, sai em disparada e chorando e gritando pela mãe pra contar que a minha vó estava caducando.
Noticia espalhada, ouvi alguns comentários, “esse menino está delirando” “esse moleque ta vendo coisas” e pra lá foram minhas tias Cajazeiras verificar em loco o ocorrido. Processada a “auditoria” in loco, vi minha mãe “brigar” com uma delas, dizendo que eu jamais seria capaz de fazer uma coisa dessas. Possivelmente uma delas pode ter sugerido que eu “moleque” posso ter jogado o penico de xixi na chaleira. Fiquei arrasado e dali pra frente, eu já sabia que a vida de adulto não ia ser fácil e com meus dez anos incompletos já estava apavorado com a idéia do envelhecimento.