O presente de noivado



 Esse fato, juro, aconteceu
 na metade do século passado.
 Quem me contou já morreu.
 Mas eu conto, autorizado.

 Num distante interior
 João quis noivar,
 aproveitando o fulgor
 da luz chegando ao lugar.

 Ele moço vivido, da cidade.
 Ela uma linda moça, aliás.
 Criada com austeridade
 pelos conservadores pais.

 João apaixonado, enricado
 trouxe lá da cidade
 um presente de noivado:
 uma radiola, última novidade.

 Para estreiar a vitrola,
 trouxe um disco de amor.
 _Esta música, João, não rola.
 É melhor não tocar, não senhor.

 Seu sogro é muito ignorante,
 o respeito pra ele é sagrado.
 Esta letra é insinuante
 pra quem gosta de pecado.

 A música tocando não poupa
 a letra. Não durma de touca:
 ¨De dia me lava a roupa,
 de noite me beija a boca...

 Isso vai dar confusão.
 Melhor trocar este disco.
 Melhor me ouvir, João,
 fique atento, seja arisco.

 O diabo é que a canção
 era a primeira a tocar.
 O tempo estava contra o João,
 não dava mais pra trocar.

 Sem pensar nas consequências
 João busca uma solução:
 Raspa com jeito a indecência
 e foi pro noivado, então.

 A festa seguia animada,
 todo mundo bem enfeitado.
 A mãe da moça emocionada...
 O pai aceitara o noivado.

 Pra alegrar o ambiente,
 troxe João a novidade.
 Ligou, na luz, o presente.
 Ficou todo à vontade.

 A radiola ía tocando
 aquela música insinuosa.
 Os pais da noiva escutando,
 com uma atenção espantosa.

 Ao chegar naquela parte
 que o João tinha raspado,
 ouviu-se o trovão do bacamarte...
 Acabou-se o noivado.

 A música insinuando não poupa
 a letra levada da breca:
 ¨De dia me lava a roupa,
 de noite me beija a checachecacheca... 

 
 

 .