Anjo de asas cortadas
“... de tal modo as criaturas mundanas têm
tendência a se envergonhar das suas ações.”
Dostoievski
— Agir, verbo cruel! — murmurava Pedro, sentado na poltrona de frente para a janela da sala. A chuva caía diluvial na noite solitária.
— Diga-me com quem tu andas, que te direi quem és. — continuava ele — Não é justo julgar alguém pelas suas amizades!
Quando tinha dinheiro no bolso não havia solidão mas naquela noite estava liso. A galera, com certeza, estava metida em algum bar enchendo a cara, cobrindo a mais íntima solidão com o perigoso véu etílico.
— Se fosse esse o critério ninguém teria amigos... — e riu de sua inesperada reflexão sobre o caráter humano.
Não tinha sono. Havia algo esquisito, um ponto de interrogação espetava sua mente. Assim ninguém consegue dormir!
— Pela primeira vez me senti gente de verdade! E eles riram de mim! — às vezes é bom falar sozinho; não há quem discorde.
Na manhã anterior Pedro acordou cedo: onze e meia e se encontrou com a galera. Estavam a caminho do campinho, pra jogar conversa fora, contar vantagem, exagerar, mentir. Assim se sentia forte, se sentia homem: falar que comeu três e na verdade não beijou nenhuma. A turma acreditava senão ele não acreditaria nas mentiras deles. Uma troca bem sucedida. Com uma turma assim, quem precisa se arriscar a contar a verdade se não há uma?
Passaram por uma casa onde uma velhinha, que devia ter cerca de trezentos e quarenta anos, tentava subir a escada com o carrinho de feira cheio. Todos olharam calados, provavelmente, querendo ajudar. E a vergonha de ser o “mané” que ajuda velhinhas a subir escadas com carrinhos de feira? Essa não! Ninguém queria ser famoso por isso não!
A velhinha lançou um olhar suplicante para eles. Ninguém tinha culpa se ela comprou a feira toda e não conseguia carregar! Azar o dela!
— Nossa, mano! A véia trouxe a feira toda!
— Coitada da véia! Ela deve ir na feira só uma vez por ano!
E todos riram disso como se estivessem no circo. Era uma cena muito engraçada mesmo! Tinha até a metade de uma melancia e vários sacos de verduras amarrados dos lados do carrinho!
— Será que ela está levando tudo isso de coisa para os netos? Ah, queria uma vó assim!
— O que você falou, Pedro?
— Nada não!
Pedro ficou angustiado. O que faria? Precisava decidir. Nunca foi fácil tomar uma decisão, por mais simples que fosse. Ele preferia ir para onde o vento o levasse e esse vento era a galera. Mas agora precisava decidir sozinho: deixar a velha ali para sempre com o carrinho cheio de compras, talvez para os netos ou para o marido inválido, ou ser motivo de eterna gozação da galera.
A galera... seu tesouro! E Pedro começou a sentir vergonha desse pensamento.
— Não! Eu não consigo! Não posso!
Enquanto a turma inventava uma piada por segundo sobre a velhinha, Pedro tomou sua decisão.
Às vezes uma única decisão pode mudar o rumo da história. Mas tem também a decisão de deixar a história como está. Pedro decidiu; o que faria depois não era para pensar naquela hora tão singular.
— Senhora? Posso te ajudar?
— Ai, meu anjo. Por favor...
— Dá licença.
— Pode entrar. Obrigada, meu filho!
— De nada!
A cada degrau a vergonha subia. Como ele podia fazer aquilo? Que vergonha! A velha que chamasse um vizinho, o bombeiro, o padre, sei lá!
Pedro parou um pouco para tomar fôlego e olhou para a velhinha. O rosto muito enrugado e magro, suado, a mão ossuda e trêmula no corrimão, as costas curvadas, e ela subia a escada devagar, quase sem forças. Olhou também para a galera. Todos riam dele. Não podiam fazer outra coisa. Ajudar? De jeito nenhum! Se ele quis ser palhaço, problema dele!
Pela primeira vez Pedro olhou de cima para a galera e eles pareceram tão pequenos e ele tão grande, superior. Não era porque estava na escada não! Era outra coisa que ele não conseguia entender.
Continuou puxando o carrinho escada acima. Enfim o último degrau e um longo suspiro de alívio. Não estava aliviado porque chegou ao fim da escada; era um alívio diferente. Era como se livrar de algemas, da humilhação que elas impõem.
— Obrigada, meu anjo.
— De nada, senhora.
— Você é um menino muito bom. Vai se dar bem na vida.
— Tchau, senhora!
— Meu anjo, leva essa pêra pra você.
Pedro estendeu a mão e a velhinha, tremula, colocou a pêra na mão dele e sorriu um sorriso desdentado e suave de quem entende das coisas da vida.
— Nossa! Que sorriso bonito! — pensou Pedro descendo a escada. Nem pensava que agora precisaria agüentar a gozação da turma.
E tiraram sarro dele até chegarem ao campinho. Pedro não entendia as brincadeiras, estava aéreo, com um sorriso besta que incomodava. Por que ele estava feliz? Que direito ele tinha de estar feliz? Não, ele não poderia nem ficar alegre se a turma não ficasse e eles não estavam alegres! A coisa funciona assim e não seria ele quem mudaria.
A galera não havia acabado de tirar sarro dele, e nunca acabariam, quando Pedro se levantou com a pêra na mão, atravessou o campinho e sumiu na escada.
“Obrigada, meu anjo!”
Anjo? Anjo sim! Ele ouviu direito! Um anjo. Não, não era mais um anjo desde quando foi aceito na turma. Eles arrancaram suas asas e sua auréola apagou.
“Você é um menino muito bom.”
Não era não! Depois que perdeu as asas e ganhou aqueles amigos deixou de ser! Não havia outro jeito! Viveria solitário?
Mas a culpa não era deles. Eram seus amigos e os amigos não tem culpa de nada! Ele permitiu que cortassem suas asas e ninguém podia julgá-los por isso.
— Ganhei uma pêra porque ajudei uma velhinha! Uma pêra! Acho que se ela me desse dinheiro, não sentiria nada!
O que ele sentia naquele momento era o chão como nuvem.
— Oi, Lú!
— Pedro? Que surpresa boa!
— Pra você!
— Adoro pêra! Obrigada!
— Ajudei uma velhinha com o carrinho de feira e ela me deu essa pêra, aí eu lembrei de você!
— Nossa, quanta gentileza! Então você ajudou uma velhinha, é?
— Ajudei!
— E a galera? Já sabe?
— Eles viram tudo. Estão rindo de mim até agora! — e Pedro sorria como uma criança que ganhou um elogio da professora. Estava até emocionado.
— Por que você tá contando isso pra mim?
— Porque você, Lú, pode me entender, afinal você cuida da sua vó!