GRUNHIDOS

Eita! que já não posso dessa vida lamentar. Inda pouco, lá pelas bandas do cascudo, seu Raimundo, homem forte do sertão, e pele mais escura que carvão, não desdizia o que da sua boca saia. E foi pelas falas desse homem, que todos gostavam, se soube, sem prova porque não precisava, seu Raimundo era de palavra. E foi da sua boca que se ouviu o que agora vou narrar; espero saber contar tudo como eu ouvi, pra ninguém dizer que menti. E foi estar eu um dia naquelas bandas a conversar à beira da rua, foi que fiquei sabendo que seu Raimundo em certa noite de lua, ouviu um grunhido, que ninguém sabia o que era. O fato é que depois daquele dia a cidade, que era calma e cheia de alegria, ficou toda em revoada, que nem bando de pardal em povoada. Ninguém mais saia, e a praça, que antes era pra aonde todos corria, ficou tão em fantasmagoria, que se ouvia o silencio da bica vazia. E assim por muito tempo se sucedeu, nada de novo aconteceu. Os grunhidos não paravam, parecia coisa de outro mundo e só aumentavam. Moradores mudaram, outros chegaram, crianças viraram adultos que se casaram, e a cidade ficava naquele grunhido infernal desde o dia que grunhido invadiu todos os quintal. Falou-se de tudo e muito mais: alguns diziam que era o gemido de uma criança que a mãe tinha abandonado, e que a pobre alma grunhava feito coitado. E seu grunhido, era isso que todos afirmavam ter ouvido, quer dizer, quase todos, era pra não esquecer do pecado cometido. Isso nunca foi confirmado, inda mais quando apareceu dona Ninoca, senhora corpulenta e famosa não pelos dotes físicos que ostentava, mas pelas notícias da vida alheia que inventava. A todos noticiou que o grunhido advinha lá da casa de dona Marieta, mais precisamente, da sua filha, jovem que aos 25 fora abandonada pelo noivo no altar da igreja. E desde aquele dia não saiu mais de casa e ficava naquela barulheira. Diziam, ainda, que a história verdadeira era por causa de uns bichos que ficavam lá pelas bandas do rincão, um lugar bem afastado e com muito mato que ia desde o topo até o chão. E que a bem uns anos, uma matilha fora encurralada por um caçador que dizimou toda a prole, inclusive alguns filhotes recém nascidos e de corpo ainda mole, e os grunhidos pareciam "me socorre!". Certa feita, quando todos já estavam cansados de tantas histórias, um grupo de mulheres, beatas na verdade, resolveram ir ao capelão, homem de bons modos, que na cidade falavam ser um tipão. Depois de ouvir as mais diversas versões, o capelão, Bento era seu nome, olhou para cada uma daquelas filhas, ergueu a mão para o céu, não sem antes tirar seu solidéu. Após fazer o sinal da cruz, habito adquirido desde que se tornou capelão, pois, alguns mais antigos, diziam que quando ele era mais jovem e corrediço atrás de rapariga, era inclinado a uma boa briga. Depois de fazer o sinal da cruz, Bento, pausadamente, disse que o motivo dos grunhidos eram por causa das almas penadas que andavam pela cidade, não pra fazer mal, era por necessidade. Todas aquelas senhoras, cada uma, por iniciativa própria e também pelos hábitos eclesiásticos, após fazerem o sinal católico seguido de um "cruz credo", desde aquele encontro com o capelão, difundiram a "verdadeira" razão. E assim, a cidade levava sua vida, ora se contando isso, ora aquilo, promessas foram feitas, procissões tornaram corriqueiras e os grunhidos não cessavam. Chegou-se, após votação feita na praça, que por muito tempo não vira uma única alma, nem que palhaço fizesse graça. A multidão em assembléia aprovou, que daquele dia em diante, um morador, excetuando as crianças, as mulheres, os idosos e visitante, faria a vigília da cidade como se fosse um volante. Todos os homens que não preenchiam esses requisitos, estavam, incontinenti, convocados, por esquema de rodízio, a fazerem a vigília da cidade para o bem comum. Ninguém sabia explicar, mas, desde aquela votação, seu Sidiclêcio, o barbeiro mais antigo das redondezas, teve que abrir outra barbearia para atender a demanda que crescia parecendo correnteza. Da noite para o dia mais que triplicou, tantos foram os homens que na barbearia entrou. Os pedidos eram todos iguais, era para "pintar" seus cabelos de branco, de modo que a vigília não vingou. Os grunhidos continuavam e as histórias cada vez mais se multiplicavam. Tantas foram as "verdadeiras" que ninguém mais sabia onde começava ou onde terminava, mas o fato mesmo é que ninguém sabia ao certo o que eram aqueles grunhidos. E assim a cidade ia vivendo, uns nascendo, outros morrendo, uns casando, outros largando e o tempo, que não tem parada, sempre avança, o tempo foi, como um rei, ditando suas regras, que entra no peito feito lança. De modo que os que um dia "pintaram" os cabelos, já não precisavam mais do barbeiro; a barbearia, agora reduzida a uma, passava meses sem entrar uma viva-alma, até que num dia de quarta-feira de cinzas, seu Sidiclêcio, já próximo dos 90, foi encontrado inerte e sem respiração sentado à sua cadeira vermelha, morreu. E a barbearia tornou-se apenas mais um comércio fechado. Como se já não bastassem as inúmeras versões acerca dos grunhidos, apareceu, sem ninguém saber como e de onde, uma linda moça. Veio sozinha, e como toda gente nova, causou certo rebuliço, tanto nas mulheres quanto nos noviços. Nas mulheres por razões contrárias as dos homens. Nelas pelos dotes da moça que elas não tinham, nos homens pelos dotes que só eles viam. O fato é que essa moça, aos poucos, foi se enturmando à vida da cidade. Conheceu algumas das senhoras, o capelão, dona Ninoca, o prefeito, o delegado, enfim, se acercou das autoridades legais, e morais. Soube-se que essa linda moça tinha vindo do estrangeiro e que lá tinha estudado numa tal de "Rarvade". Diziam que era especialista em descobrir, ou melhor, desvendar mistérios e que tinha vindo pra cidade para descobrir o que eram aqueles grunhidos. Sim!, ninguém sabia, mas a história dos grunhidos tinha atravessado o mundo e foi parar nas "europa e nos estaites"; teve os grunhidos divulgados em fitas de enfeite. A moça ficou na cidade por uns 5 anos. Não provou, quer dizer, não desvendou, os motivos dos grunhidos, e se tornou motivo de mais histórias: se casou com Bento, o capelão. E os grunhidos? Ora! os grunhidos foram ficando tão familiares que ninguém mais deles falava. Mas o casamento do Bento com a moça ficou tão comentado que alguns diziam que a moça era uma feiticeira. Além de enfeitiçar o capelão, mentia quando falava que "dada as provas coletadas e analisadas pelos mais criteriosos métodos científicos, sobre a ocorrência de estranhos grunhidos que perduram por anos, chega-se à conclusão, que poderá ser contestada, de que tais eventos não têm outra origem senão no ranger dos portões da Fazenda "Não sintas medo". "Ora! pois, sim, como acreditar que portões fariam tamanho barulho; essa gente metida a sabe tudo, vem do estrangeiro, com essas modernidade, vem do estrangeiro querendo que nóis acredita em tudo, só porque são da cidade, gente besta mesmo. Não sabem é nada, isso sim", diziam aos quatro cantos todos os moradores, que sabiam da verdadeira história dos grunhidos. E a cidade, entre uma verdade e outra, um nascimento, um enterro e outro, a cidade foi vivendo e quem quiser conhecê-la é só seguir pela estrada das sete almas, entrar no beco dos desesperados e subir a ribanceira "não desista"; quando chegar numa ruazinha de terra batida, olhe para a esquerda, se vir uma senhora e um senhor de braços dados, não cumprimente, passe direto e ouvirá estranhos grunhidos que ninguém sabe o que é, se de assombração ou de gente.