Entrevista de Emprego
Tempo é dinheiro.
E Haroldo não estava disposto a perder nenhum minuto (ou centavo).
Desde o início da manhã daquela terça feira de calor e umidade que ele estava trancado em seu escritório, entrevistando os candidatos a vaga de supervisor de vendas que tinha sido recentemente desocupada na loja em que era gerente. Quem o havia incumbido de tão árdua tarefa foi a Sra. Eleonora, a dona da loja, que não tinha tempo de entrevistar todos e a vaga precisava ser ocupada o quanto antes. Haroldo concordou em fazer as entrevistas, até por que ele tinha razões particulares em colocar alguém no cargo com quem pudesse se der bem, mas essa tarefa até agora estava se mostrando uma perda de tempo.
Cada candidato que havia aparecido era uma figura. Para não dizer coisa pior. Uns esqueciam documentos, outros atendiam telefonemas em plena entrevista, havia quem não conseguia evitar uma ou outra gíria. Houve um, por exemplo, que quando interrogado sobre seu chefe anterior, cuspiu no chão e pulou três vezes.
Um transtorno obsessivo compulsivo. Ele tentou se defender.
Estes, apenas para citar alguns casos.
Já eram quase onze da manhã e não tinha chegado nenhum candidato bom o suficiente ou com o perfil que se encaixava com o que Haroldo queria. Ele, então, começava a se arrepender de ter aceitado essa tarefa, quando poderia estar fazendo outras coisas muito mais proveitosas, e lucrativas. Mas não podia reclamar. Sra. Eleonora estava trabalhando na sala ao lado e ele precisava manter sua imagem de gerente exemplar, principalmente agora, considerando o motivo da saída do último supervisor de vendas. Motivo esse que Haroldo não mencionava sob hipótese alguma, com medo de com isso, o relacionasse com o caso, mesmo que muito indiretamente. Ele engole seu desgosto e prossegui com o expediente, olhando e folheando os papéis na sua frente.
Haroldo revira os currículos em seu birô e acaba perdendo a ordem em que estavam. Exausto, chama sua secretária.
- Joana!
Sapato lustrado, uniforme alinhado, cabelo em coque, a secretária chega com a prontidão de sempre.
- Sim, Sr. Haroldo?
- Você poderia me informar quantas pessoas ainda estão lá fora aguardando a entrevista?
- Na última vez que olhei tinha apenas dois homens, mas deixe-me verificar - A secretária saiu a passos largos para conferir quantas pessoas ainda estavam na sala de espera. Era o primeiro dia de Joana como secretária de Haroldo, e ela estava empenhada em não parecer preguiçosa ou desinteressada. - Sim - Ela disse assim que voltou - Dois homens estão lá fora.
- Graças a Deus só faltam mais dois por hoje. Peça ao primeiro que entre.
Joana sai novamente. Não se passam nem dois minutos e um homem de vestes simples e feições humildes entra no escritório. Sua pele era escura devido à ascendência crioula, o que causou certo impacto visual em Haroldo.
O homem se senta após um breve pedido de licença e põe a pasta que carregava em suas pernas.
- Bom dia, doutor - Ele fala.
- Bom dia... Vejamos você é... - Haroldo se atrapalha com todos os papéis e fichas dos candidatos que se espalhavam em seu birô. Vendo a dificuldade do gerente, o homem se adianta e lhe entrega uma cópia do seu currículo que tira da pasta.
- Aqui está meu currículo
- Obrigado. Seu nome é Marcos Silveira.
- Isso mesmo.
- Você tem muito boas referências, Marcos - Disse Haroldo examinando com olhar altamente crítico o currículo em mãos.
- Muito obrigado - Fala Marcos, agora bem menos tenso - Desde muito jovem que venho trabalhando para adquirir experiência. Já trabalhei em grandes lojas da região, como o senhor pode ver e tenho aprendido muito sobre o setor de vendas.
- Interessante. Pelo que vejo, o último lugar em que você trabalhou foi numa filial de uma grande rede de supermercados.
- Sim. Eu era o que se podia chamar de subgerente. Trabalhei lá durante cinco anos.
Haroldo se surpreende com o cargo que Marcos ocupava. Uma pessoa de aparência tão simples ocupar uma posição nobre não era algo que Haroldo esperasse ver, e uma pequena labareda de curiosidade começa a crepitar dentro dele.
- Desculpe a indiscrição da pergunta, mas porque você saiu?
Marcos se ajeita na cadeira, desconfortado.
- Bem, senhor. Eu sei que não se deve falar mal do emprego anterior assim, numa entrevista, mas eu também não podia ficar omisso diante de uma coisa errada.
- O que você quer dizer com isso?
- Para dizer a verdade, o motivo de eu ter saído foi que ninguém queria acreditar na existência de um plano de corrupção. Vou explicar melhor: Um dia, eu cheguei cedo à empresa para uma reunião e surpreende meu chefe falando ao celular. Pelo que eu pude ouvir da conversa, ele estava dando orientações para alguém que queria dar um desfalque numa empresa que não sei qual. Na ocasião não dei atenção porque pensei que tinha ouvido um trecho da conversa fora de contexto. Mas alguns dias depois, eu ouvi novamente ele falando ao celular e percebi claramente que ele estava repassando instruções para alguém que queria dar um golpe nessa outra empresa e iria receber uma parte do dinheiro por isso. Denunciei para a polícia, mas devido à falta de provas, não só não fizeram nada com ele, como fui demitido por justa causa e tive que pagar uma indenização por calúnia e difamação. Desde então, minha condição financeira não é lá essas maravilhas, mas não tem problema. Tive uma infância pobre e desde cedo aprendi a superar as dificuldades, e dessa vez não será diferente. Jurei para mim mesmo que superarei esse momento difícil e que provarei minha inocência demonstrando que eu estava certo quanto aos planos do meu ex-patrão. Está bem que sei por onde começar. Eu só tenho o primeiro nome da pessoa com quem ele estava planejando o golpe, que pude ouvir da conversa, que é Evandro. E o assunto tinha alguma coisa a ver com clientes e vendas. Fora isso não, eu tenho mais nada. Mas estou convencido de que irei conseguir. Estou lhe contando isso, para que quando esta história chegar aos seus ouvidos, você não saiba apenas uma versão, mas também veja... O senhor está bem? - Pergunta Marcos a Haroldo, que começava a suar frio e parecia alvoroçado.
- Eu estou bem, sim... Eu só preciso de um pouco de ar - Diz Haroldo afrouxando o nó de sua gravata, que de repente parecia lhe incomodar bastante - Acho que passei muito tempo nesse escritório.
- O senhor não estar bem, vou chamar a secretária - Disse Marcos se levantando e indo até a porta. Ele chama pela secretária, mas ninguém vem ou responde. Provavelmente Joana teria saído à algum lugar - Sua secretária não está aqui, você quer que eu lhe traga um copo d'água?
- Você faria isso?
- Sim. Claro.
- Nossa. Eu ficaria muito agradecido - Diz Haroldo acompanhando a saída apressada de Marcos do escritório. O gerente se levanta e vai até a porta para certificar-se de que Marcos estava longe o suficiente - Ai, ai. Ainda mais esse agora. Só faltava isso para piorar meu dia - Ele diz andando agitado pelo escritório - De forma alguma ele pode trabalhar aqui. Senão ele vai por tudo a perder. Eu estarei ferrado. Mas o que eu faço? Vou dispensá-lo. Vou inventar uma desculpa qualquer, dizer que ele não se enquadra com o que queremos apesar de seu currículo ser bom e que ele vai encontrar um bom emprego em outro lugar. Mas quem eu vou contratar? Joana disse que tinha apenas dois homens lá fora. Será que vou ter que chamar novos candidatos e enfrentar outro dia de entrevistas? Não, isso não! Já sei: Vou chamar o outro e se ele possuir minimamente as qualificações necessárias eu o contrato. É o jeito.
Haroldo vai até a porta, olha de um lado para o outro e não vê nenhum sinal de Joana ou de Marcos. Para onde foi Joana? E onde aquele infeliz terá ido pegar água? Haroldo se perguntava, mas ele não estava com disposição de ficar imaginando a resposta, ao invés, ele grita com todo o fôlego de dispunha:
- Próximo da entrevista, por favor!
Em seguida ele vai até o seu birô e organiza um pouco os papéis espalhados em cima. Alguns ele deixa ali mesmo sob o peso de papel e outros ele vai guardar em grandes gavetas de metal para arquivo que ficavam atrás, encostados à parede.
- Droga de papelada. Se ao menos os candidatos valessem a pena. E esse aí que tenho de dar um jeito. Que desculpa eu invento para ele? Vou pensar em algum convincente - Haroldo murmurava enquanto guardava os papéis.
Sem que ele se desse conta, alguém entra no escritório. Era o segundo homem que estava na sala de espera que Joana tinha falado, e agora estava sentado na cadeira onde Marcos estava.
Quando Haroldo se vira e o encara, sente como se uma bola gigantesca de gelo tivesse atingido seu estômago, sua respiração fica ligeiramente dificultosa e suor começa a inundar sua testa e suas mãos.
- Oi, Haroldo. Sentiu minha falta? - Falou o homem em tom sarcástico.
- Evandro! O que faz aqui?
- O que eu faço aqui? Ora, acreditaria que vim tentar a vaga de supervisor de vendas? Um emprego que ainda seria meu se você não tivesse rompido com nosso acordo.
- Como entrou aqui?
- Não foi difícil passar por aquela sua secretária. Ela é nova aqui, não é? Ela pensou que eu fosse mais um candidato a vaga, e foi só pedir um favor que ela foi correndo atender. Novatos, sempre querendo agradar. Pedi a ela que me desce algumas folhas para anotações e como as da impressora já tinham acabado ela foi para o almoxarifado e ainda não voltou. O que é oportuno, já que quero falar com você a sós.
- Não temos nada para conversar.
- É claro que temos! - Falou Evandro batendo com força as mãos no birô e se levantando - Você não se lembra do que combinamos?
- O quê?
- Não se lembra? Pois vou refrescar a sua memória. Você se recorda que planejávamos adulterar as compras durante aquela promoção. Vendendo produtos parcelados e cobrando juros inexistentes que iriam direto para o nosso bolso?
Haroldo corre até a porta e a fecha.
- Quer falar mais baixo? Eleonora está na sala ao lado.
- Ótimo. É bom que ela ouça mesmo. Assim não só eu levo a culpa, mas você também. Estávamos juntos nessa, e quando Eleonora começou a desconfiar você jogou toda a responsabilidade para cima de mim.
- O que você queria eu fizesse? Você havia dito que era muito improvável que ela descobrisse.
- E era. Um gerente de um supermercado, conhecido meu, me disse que era um ótimo plano. Ele mesmo já havia aplicado numa antiga empresa em que tinha trabalhado. Teria dado certo se você não tivesse amarelado, assim que Eleonora começou a desconfiar. Agora só eu que fui demitido e só eu estou sendo investigado. E não finja inocência Haroldo, bem sei que durante a realização do nosso plano, você embolsou uma grande quantia.
- E daí? Você também não saiu de mãos vazias.
- Sim. Mas minha conta bancária está bloqueada por causa da investigação, de modo que você vai ter que dividir o dinheiro comigo para que eu possa pagar um bom advogado. Somos sócios Haroldo, e a não ser eu, você e o gerente do supermercado, ninguém mais está nessa.
- Aí é que você se engana. Outra pessoa está envolvida e pode descobrir tudo.
- Do que você está falando?
- Não interessa. O que não vou é ceder às suas chantagens. Quanto mais me envolvo com isso, mais fico com o pescoço em risco.
- Você não pode fazer isso, tínhamos um acordo!
- Quem disse? A idéia disso tudo foi sua, então responda por ela sozinho - Disse Haroldo mais alto do que gostaria.
O ódio que tomava conta de Evandro era indescritível.
- Você vai pagar por isso - Ele disse com dedo em riste.
- Veremos. Até lá conheço homens de uniforme que adoraria te ver aqui, falando estas coisas.
Haroldo vai caminhando até a porta com a intenção de ir chamar a polícia, mas antes que pudesse alcançar a maçaneta, é atingido pelo peso de papel que Evandro joga, e ele cai desmaiado no assoalho de seu escritório.
- Você não vai se safar dessa assim - Evandro falou curvado sobre o gerente caído no chão.
Ele ouviu alguém bater timidamente na porta.
- Sr. Haroldo, desculpa a demora, é que eu ouvi vozes e pensei que estivesse ocupado - Marcos põe a cabeça no vão entre a parede e a porta, depois que a abre e se depara com a imagem de Haroldo inconsciente no chão.
- O que aconteceu?!
Evandro dar de ombros.
- Sei lá. Quando cheguei, ele estava assim, caído. Talvez não estivesse bem de saúde.
Marcos se aproxima, põe o copo descartável cheio de água que carregava ao lado de Haroldo e começa a mexê-lo com as duas mãos.
- Senhor Haroldo, acorde. O que aconteceu? Está me ouvindo? - Ele falava enquanto sacolejava o gerente inerte.
Joana chega ao recinto. Ela escancara a boca, chocada.
- Mas o que houve aqui?
Ela olha para os dois homens a sua frente, mas nenhum deles estava conseguindo ou querendo se explicar.
- Vamos! Digam. O que houve com o Sr. Haroldo?
- Senhorita, não se preocupe, está tudo sob controle – Fala Marcos, tentando parecer tranqüilizador.
- Não. Não está. O que aconteceu com o Sr. Haroldo? Oh, meu Deus. Ele está vivo?
- Está sim, é só ficar calma – Fala novamente Marcos, querendo convencê-la de que estava tudo bem.
Evandro apenas ficava ali parado, fingindo está tão surpreso quanto Joana.
-Socorro! – Grita a secretária atarantada – Alguém! O Sr. Haroldo!
Os gritos de Joana rompiam a monotonia de todo o andar em que ficava o escritório e eram ouvidos por clientes e funcionários espantados com a repentina agitação.
Não demora e o zelador chega, ainda com o rodo em mãos.
- O que foi? Por que os gritos?
- O Sr. Haroldo – Diz Joana apontando para o chefe desacordado – Ele está desmaiado.
O zelador chega mais perto e sacoleja Haroldo, como Marcos estava fazendo minutos antes. Depois, o próximo a se juntar ao grupo foi a própria Eleonora, que estava em um escritório próximo escrevendo um documento quando ouviu os gritos de Joana, e ainda teve o cuidado de salvar as informações antes de sair correndo para ver do que se tratava.
- Meu povo! – Ela falou logo que chegou – Alguém pode me explicar o que está acontecendo?
Mas ninguém lhe respondeu de imediato. O zelador estava ocupado tentando reanimar Haroldo. Evandro e Marcos olhavam para Haroldo e para os lados, confusos e sem jeito.
- Dona Eleonora, quando cheguei aqui, Sr. Haroldo estava assim desmaiado e esses dois estavam com ele – Diz Joana apontando para os dois homens um pouco afastados que coçavam a cabeça e franziam o cenho, como se pensassem no que dizer. Quando Eleonora se volta para eles, não esconde sua cara de surpresa.
- Evandro? O que você está fazendo aqui? Achei que tinha te dispensado de suas atividades.
- Sra. Eleonora. Eu posso explicar – Fala Evandro, juntando as mãos como numa oração – Eu só vim aqui ver se Haroldo tinha um tempinho para... Sabe, me dar uma carta de recomendação.
- Nenhuma carta de recomendação vai apagar o fato de você ser suspeito de dar um desfalque na empresa sabotando as vendas.
- E foi ele? – Pergunta Joana – Se eu soubesse teria ido avisar à senhora.
O zelador se levanta e sai, voltando instantes depois com o frasco de um produto de limpeza.
- Vamos ver se ele acorda com isso? – Fala ele segurando o frasco aberto perto do nariz de Haroldo.
- O que vocês estão esperando para chamar a ambulância? – Pergunta Eleonora.
Evandro praticamente pula no telefone em cima do birô antes que Marcos tivesse sequer a chance de se mexer, e telefona para a ambulância.
No chão, Haroldo começa a esboçar algumas reações ao odor do produto de limpeza.
- Vejam! Ele está acordando – Disse Joana.
- Isso é muito bom – Disse o zelador – assim ele vai nos contar quem bateu nele.
- Como assim? – Diz Eleonora chegando mais perto.
- Na nuca dele tem um pequeno sangramento, e acho que seja um hematoma. Ele recebeu uma pancada. – Fala o zelador.
Eleonora olha desconfiada para Marcos e Evandro.
- Não fui eu. Eu fui pegar um copo d’água para ele e quando voltei estava assim – Fala Marcos apontando para o copo d’água perto de Haroldo e que quase Eleonora pisa em cima.
- Eu muito menos. Eu estava na sala de espera quando ouvi algo e vim ver o que era. Quando cheguei Haroldo estava caído no chão e esse aí com um copo de água – Diz Evandro apontando com um gesto de cabeça para Marcos, que olha para ele indignado.
- Já chamei a polícia – Fala Joana que tinha saído um pouco sem que os demais percebessem – Isso estava no chão – Ela fala entregando o peso de papel para Eleonora. Era uma esfera maciça de jade do tamanho de uma laranja. Pelo peso dava para perceber que podia fazer um bom estrago mesmo se não jogado com muita força como parece ter sido o caso.
- Muito bem. Isso é muito grave. Não se trata apenas de uma lesão corporal, e sim de uma tentativa de homicídio. Ninguém sai antes que a polícia chegue – fala Eleonora, decidida, no que Evandro engoliu em seco, torcendo para que ninguém percebesse a sua apreensão. Como por coincidência, nesse exato momento chega um homem magro e de bigodes acompanhado por dois homens uniformizados, portando revólveres em suas cinturas. Era o delegado Félix com outros dois policiais.
- Eleonora, o que houve?
- Delegado Félix. Alguém abateu Haroldo, provavelmente com isso – Ela mostra o peso de papel – E talvez seja alguém que ainda esteja aqui.
Delegado Félix olha em volta. Ele vê o zelador agora de pé em frente a ele, a secretária Joana tentando parecer formal, embora estivesse quase histérica e Evandro e Marcos mais ao fundo.
- Evandro? Você não deveria está afastado para responder ao processo? – Fala o delegado. Ele conhecia o caso do desfalque e da sabotagem nas vendas, e até pensou que isso tinha alguma coisa haver quando estava dirigindo a viatura nas proximidades e foi avisado pelo rádio da polícia que tinha um chamado da loja de Eleonora – E você – Félix aponta para Marcos – Não é aquele cara que nos fez uma denúncia dizendo que o patrão estava conspirando?
Todos olham para Marcos que abaixa a cabeça. Ouve-se, logo após, alguns gemidos. No chão, Haroldo finalmente estava acordando. Ele tenta abrir os olhos, mas a luz ofuscava sua visão. A dor que sentia era terrível, e a vertigem fazia tudo girar, como se ele tivesse sido diminuído ao tamanho de um dedo mindinho e forçado a brincar de carrossel num daqueles liquidificadores potentes que eram vendidos na loja. Quando finalmente consegue abrir os olhos, Haroldo vê a pequena multidão ao redor, olhando-o abismada.
- Afastem-se. Ele precisa de ar. – Diz o delegado.
Todos se afastam.
- Haroldo – Era a voz de Eleonora vinda do seu lado esquerda – Nós sabemos que você foi atingido por uma pancada. Poderia nos dizer quem foi?
Quando sua visão entra em foco completamente, Haroldo observa o rosto de cada um que o fitava apreensivo à espera de uma resposta. Ele por pouco não desmaia novamente quando vê o delegado Félix.
- Sim, Haroldo – Disse Evandro – Poderia dizer quem foi?
Evandro o olhava de uma forma que ele entedia muito bem. O olhar significava que se ele contasse o que aconteceu, Evandro contaria tudo que sabia sobre ele e o acordo que tinham. Ele estaria arruinado se Evandro batesse com a língua nos dentes.
Haroldo tenta se mexer.
- Fique quieto. Não se mexa. Pode ter fraturado alguma coisa na queda – Diz um dos policiais.
Mas Haroldo não se importa, ele levanta o braço e aponta.
- Foi ele!
Haroldo apontava para Marcos.
A surpresa foi total no escritório.
- Bem que eu desconfiava – Diz Joana levando a mão à boca.
- Homens. O algemem – Diz o delegado Félix aos policiais que avançam para Marcos.
- Não. Não fui eu. Eu juro. Fui pegar água – Falava ele enquanto era algemado.
- Guarde o seu fólego para a delegacia. Como se não bastasse inventar calúnias de uns gerentes, agora está atacando outros – Fala o delegado – Levem-no à viatura.
- Não fui eu. Ele está mentindo – Dizia Marcos enquanto era praticamente arrastado pelos policiais ao corredor.
- E porque, diabos, ele mentiria? – Fala o delegado. Joana, Eleonora, o zelador e Evandro já o seguiam para fora do escritório, aonde chegam dois paramédicos de jaleco branco e maletas com a insígnia de uma cruz vermelha.
- Onde está o paciente? – Pergunta um deles.
- Ali! – Fala o delegado mostrando a porta do escritório. Depois se volta para os outros – Todos devem sair e deixar apenas os médicos prestando os primeiros socorros. Vocês me acompanhem. Talvez seja necessária a presença de vocês na delegacia.
Todos saem em cortejo atrás de Marcos algemado, escoltado pelos dois policiais e do delegado Félix. Eles caminham pelo corredor com portas de outros escritórios e entradas para outros corredores, chegando, depois que passam pela porta que dava para a sala de espera, a uma área ampla com estantes cheias de eletrodomésticos que ostentavam seus preços que poderiam ser parceladas em até doze vezes sem juros, ou com descontos de trinta ou quarenta por cento, mas nenhum dos cientes prestava a mínima atenção neles. Todos olhavam para a comitiva do delegado e do preso que não sabia o que fazer para esconder sua cara de tanta vergonha que sentia.
Eles chegam a uma escada que dava para o primeiro andar. Na outra ponta da escada, várias pessoas se aglomeravam para ver o que estava acontecendo. Enquanto desciam, Eleonora olha em volta. À sua frente, estavam os policiais com Marcos e o delegado. Ao seu lado, estava Joana e o zelador que ainda carregava o frasco do produto de limpeza e Eleonora não pode ver se era de lavanda ou eucalipto. Quando olha para trás, ela ver Evandro que diminuía o passo gradativamente até quase se destacar do grupo.
Eles chegam ao final da escada. A multidão abre passagem, mas ainda assim atravessam com certa dificuldade com muitas desculpas e pedidos de licença até que de repente delegado Félix manda os policiais pararem.
- Ora, ora. Mas o que aconteceu? – Pergunta um homem de terno que chegava mais perto, entre a multidão.
- Sr. Anderson? – Fala Marcos arregalando os olhos.
- Anderson – Diz o delegado – Esse seu assistente aprontou mais uma. Atacou o gerente dessa loja, agora a pouco.
- Foi mesmo? – Diz Anderson admirado – E eu que pensei que ficar inventando histórias sobre mim já era grave o bastante.
- A propósito. O que faz aqui? – Pergunta o delegado.
- Eu?... Eu... Bem, vim comprar um ventilador. Mas me diga: Como foi que isso aconteceu?
O delegado pôs-se a explicar o que sabia. Enquanto conversavam, Eleonora se volta para trás a tempo de ver Evandro subindo de novo a escada. Ela teve um impulso de avisar os outros, mas ao invés disso, ela o segue.
Evandro andava com pressa. Ele de vez em quando olhava para trás, para ver se alguém o seguia, mas Eleonora conseguia se esconder em meio aos clientes.
Evandro atravessa o corredor que dava para o escritório de Haroldo e se esconde atrás da quina de uma parede na entrada para outro pequeno corredor. Eleonora faz o mesmo, metros antes.
Na porta do escritório, os dois médicos falavam.
- O ferimento na cabeça dele pode ser mais grave do que parece.
- Vamos ter que levá-lo ao hospital. Vou pegar a maca. Você fica aqui. Posso trazer a maca com algum funcionário da loja. – Diz um dos médicos antes de sair.
O outro volta para dentro, saindo instantes depois falando ao celular. Ele vai à direção oposta do corredor ao que estava Evandro, que sai do seu esconderijo e vai para dentro do escritório, fechando a porta. Eleonora se aproxima e fica ouvindo o que se falava lá dentro.
- Ainda bem que você foi esperto o suficiente para não me dedurar! – Fala Evandro.
- Para quê? – Diz Haroldo – Para você contar tudo sobre as fraudes nas vendas e o meu envolvimento?
- É. Eu contaria tudo. Mesmo você pondo a culpa naquele idiota que estava aqui, não estamos quites. Você estava se ajudando. Você ainda me deve. Ainda tem que me ajudar com o advogado.
- Está bem. Mas espere até eu sair do hospital e aquele maluco que ouviu a sua conversa com o gerente do supermercado estiver preso, aí sim eu te dou algum dinheiro. Não devemos levantar suspeitas - Haroldo ainda falava com dificuldades.
Ouvindo atrás da porta, Eleonora estava boquiaberta. Ela estava sendo roubada pelo seu próprio gerente e um inocente estava sendo levado preso no lugar do verdadeiro culpado.
- Ótimo. Vou esperar. Já sabe que se não cumprir com seu acordo, o que aconteceu aqui foi só o começo – Finalizou Evandro.
Haroldo não falou nada. Mas Eleonora teve a impressão de que ele assentiu. Ela vê o outro médico se aproximando e ouve os passos de Evandro perto da porta. Ela sai e se esconde em seu escritório. Quando o vê passar, ela corre na outra direção do corredor. Ela precisava urgentemente avisar ao delegado que ele pegou o homem errado e que o verdadeiro criminoso estava bem ali, precisando ser apanhado. Mas ela não podia ir pelo mesmo caminho que Evandro foi, ele podia vê-la e impedi-la. Eleonora precisava de um atalho.
Ela chega numa sala e corre até um batente próximo de onde se podia ver o primeiro andar. Delegado Félix estava se despedindo de Anderson e conduzindo Marcos com os policiais para fora. Evandro estava descendo as escadas, como se nada tivesse acontecido. Eleonora, então, grita com todas as suas forças:
- Delegado Félix! Você pegou o homem errado! Haroldo mentiu! Foi Evandro! PEGUE EVANDRO!
Delegado Félix depois que se recuperou da surpresa de ver Eleonora ali, olha para Evandro que não conseguiu esconder sua cara de susto e culpa.
- Peguem ele! – Grita o delegado.
Evandro pula os últimos degraus que faltavam para descer e corre pela loja passando pelos clientes perplexos. Joana até tenta correr atrás dele, mas os seus sapatos de salto altos não a permitem ir muito longe. Evandro conseguiu empurrar um funcionário que tenta agarrá-lo e salta feito um campeão olímpico sobre um fogão que estava no meio do caminho. Ele já estava alcançando a porta da frente e concluindo o que seria uma fuga cinematográfica. Mas como a porta era de vidro e como Evandro estava muito atordoado, ele não percebe que ela estava fechada.
O vidro da porta se despedaça quando Evandro se choca contra ela, caindo desmaiado na calçada.
Como se previsse que ia sobrar para ele, Anderson vai se afastando furtivamente, mas Marcos percebe e consegue se soltar dos policiais que estavam distraídos com a fuga de Evandro e mesmo algemado, pula em cima do seu ex-patrão, o imobilizando.
Tudo que estava acontecendo parecia tão inacreditável que beirava ao absurdo, e todos, seja dentro da loja, seja passando na rua, se perguntavam se tudo aquilo era real ou não passava de uma pegadinha como aquelas que se via na televisão. Mas sendo de verdade ou não, a confusão parecia ter chegado ao seu fim com Evandro desmaiado na calçada em cima de estilhaços de vidro e com Marcos querendo segurar Anderson.
Quando Haroldo passou deitado na maca pela loja, dez minutos depois, a história do que havia se sucedido já tinha rondado em tudo o que era de ouvido, inclusive os dele, e Haroldo podia até imaginar como aquilo ia terminar para ele.
- Hoje definitivamente não é meu dia – Ele fala, antes de as portas da ambulância ser fechadas.
Uma semana se passa desde aquele dia tumultuado. A porta quebrada por Evandro já foi trocada e agora estava sendo aberta por um homem de terno. Ele caminha pelo lugar onde havia se passado o que não paravam de comentar nas praças e esquinas e até nas rádios.
Ele sobe as escadas. Atravessa o corredor e entra no escritório de Eleonora. Ela estava sentada, observando planilhas e gráficos em seu computador até que olha para ele.
- Você é pontual. Eu gosto disso – Ela fala.
O homem, porém, se limita a movimentar a cabeça, positivamente.
Eleonora se levanta.
- Você sabe o que aconteceu com o meu último gerente, o Haroldo. No dias das entrevistas para encontrar alguém para ser o novo supervisor de vendas, Evandro, que tinha ocupado o cargo anteriormente, veio aqui e chantageou Haroldo. Mas ele foi preso e contou tudo o que tramava com meu ex-gerente e com o Anderson, que também tinha vindo aqui para tratar de sua parte do dinheiro com os outros dois. Desde então estou sem gerente e sem supervisor de vendas. Haroldo e Evandro depois que saírem do hospital irão direto para a cadeia. No entanto, para supervisor de vendas eu já encontrei alguém, mas para gerente não. Então pensei em você. Pelo seu currículo, você é bem capaz. E aí? Aceita?
- Sim. Seria ótimo – Fala o homem, finalmente.
- Muito bom. É bom tê-lo aqui. Seja bem vindo, Marcos.
- Obrigado. Vai ser um prazer trabalhar com a senhora. – Marcos fala contente.
Ele estava com sua reputação restabelecida, depois que Evandro teve que confessar no hospital para a polícia tudo que fez com Anderson e Haroldo, demonstrando que ele estava certo quanto aos planos de seu ex-patrão. Marcos até tinha vestido seu terno que usava na época que era subgerente, quando Eleonora o telefonou pedindo sua presença na loja. Ele estava pronto para fazer daquela oportunidade uma carreira de sucesso e realizações.