UM MORADOR NA ROÇA
Quando me aposentei, em 1998, fui morar numa fazenda de meus primos, em Minas, e ali fazia "quase" de tudo. A intenção inicial era realizar um sonho de sempre, desde que comecei a trabalhar na "cidade grande": morar na roça, de preferência na região em que nasci e fui criado, até por volta dos quinze anos.
Para não ficar completamente ocioso, passei a ajudar aos moradores, de alguma forma, principalmente transportando-os até as cidades mais próximas: Araxá, Perdizes, Uberaba ... etc. Alguns tinham carro, mas não eram habilitados, outros não tinham, e eu os levava no meu velho e bravo Fusca/76, péssimo de lata, mas ótimo de mecânica. Quando ia com os veículos deles, não cobrava nada, me davam presentes, como feijão, queijo, doces, carnes e frangos, etc.; quando era com o meu, cobrava por quilômetros rodados, um valor que compensasse o gasto com combustíveis e o desgaste, por causa das péssimas estradas de terra. Aliás, segundo consta oficialmente, a estrada que liga a fazenda até às BRs e às cidades da região já foi pavimentada pelo DER mineiro, mas nunca viu asfalto, e por isso não pode receber os cuidados da Prefeitura local, oficialmente. De vez em quando uma patrola faz algum pequeno conserto, e hoje em dia, passou a ser responsabilidade de uma usina de açúcar e alcool instalada nas proximidades, se quiser que seus veículos consigam retirar a cana das lavouras.
Nessas andanças ocorreram alguns fatos que considero meio inusitados. Um deles foi assim:
- José, recebi esta carta de um banco, que está me cobrando uma importância muito elevada, só que nunca nem entrei lá. Aí está escrito que fiz um financiamento de cinquenta mil, coisa que nunca fiz nem no banco onde recebo o pagamento pelo leite, embora já tenha precisado muito, no comecinho, quando montei a minha fazendinha, porém, eu e a mulher já comemos muita abóbora e ovo frito, para não tomar dinheiro emprestado, viu?
- Calma, xará, deve ser algum engano! Eu mesmo sei que não assina nem cheque, e que retira todo o dinheiro do leite e das vendas de gado que faz, não é? Inclusive, dizem por aí, não sei se é verdade, que vocês pagam todas as contas em espécie, e que a "sobra" é enterrada em algum lugar do pomar, dentro de um velho latão de leite! (risos)
- Isto é uma mentira da grossa, meu amigo! Quem me dera ter algum dinheiro reservado, pois as despesas consomem tudo. A gente tem, sim, umas "quirelinhas" de nada, né? Agora, para pagar este valor aí, eu precisaria vender minha mulher e meus filhos, os cachorros e gatos, as galinhas e todo o gado, além das terras, e ainda ficaria devendo um bom tanto! imagine!
- Acho melhor irmos até esse banco, e esclarecermos tudo por lá. É o único jeito, não tem nenhum outro, xará! Não tenho nenhum compromisso, podemos ir quando você quiser, tá bom?
- Só se for já! Até já vim com a roupinha de ir à cidade ...
E assim fomos nós dois, ele bastante preocupado, já que não tinha nem noção de como conversar com um gerente de banco. Eu tentava tranqüilizá-lo, dizendo que o seu nome “José Carlos da Silva” era um nome muito comum, com certeza seria algum homônimo, e que tudo se esclareceria ao chegarmos ao banco. Ele ficou com uma cara meio assustada, porque nem sabia o que significava a palavra “homônimo”, coitado.
Já no estabelecimento, eu pedi para falar com o gerente, ele estava atendendo a uma outra pessoa, e demorou cerca de trinta a quarenta minutos, longos minutos para a impaciência do meu amigo e xará. Finalmente chegou a nossa vez, e fui eu quem me dirigi ao representante do banco, expondo-lhe o motivo de estarmos ali. O homem pegou e verificou a carta, mas alegou que o assunto não dizia respeito à sua agência, e sim à de Campinas, no entanto, foi muito gentil em ligar ao colega de lá, expondo-lhe o caso do meu amigo.
- Olha, Sr. José Carlos, o meu colega disse que não tem outro jeito de resolver a sua situação, a não ser que o senhor compareça lá, pessoalmente, pois precisa confrontar, além dos seus documentos, também a sua assinatura, entende? Pede que o senhor confirme a sua ida o quanto antes, se possível, ainda nesta semana. – propôs o homem.
- Você pode me levar até Campinas, José? – perguntou-me
- Sim, claro! Só tenho compromisso mais para o final desta semana, então, hoje ainda é terça, podemos ir, sim. – respondi
- Tudo bem, pode marcar para depois de amanhã, Sr. André.
Confirmado até o horário da entrevista com o gerente da agência em Campinas, para as dez horas, saímos da fazenda às duas da madrugada, fomos no carro dele, um pouco melhor do que o meu. Creio que o meu companheiro nunca tenha feito uma viagem tão longa, pelo menos, nunca tinha saído de Minas. Já amanhecia, quando paramos num posto na Anhanguera, onde tomamos um reforçado café da manhã. Chegamos ao destino às oito e meia, e ficamos aguardando o horário agendado. O tempo parece que não passava, tamanha era a ansiedade do meu xará, mas chegou o momento, e fomos atendidos por uma moça muito simpática e sorridente, que era a gerente, não um gerente homem, como esperávamos.
- Pois é, Sr. José Carlos, peço mil desculpas pelo transtorno, e ao mesmo tempo lhe agradeço por ter vindo, mas era imprescindível, me entende?
- Sem problemas, apesar de que eu sou sozinho na lida, tive que arrumar gente para tirar o leite lá no meu “sitinho”, e isto custa tempo e dinheiro, né?
- Sim, lógico, sem dúvidas! Bem, vamos ao que interessa. Por favor, deixe-me ver os seus documentos ... CIC e RG. Poxa, o senhor tem toda razão em reclamar, porque apenas o nome é igual : “José Carlos da Silva”!. Todos os demais dados são diferentes, inclusive a filiação! Pode ficar sossegado, completamente, pois trata-se de mera coincidência de nomes, só não entendo como é que a nossa matriz chegou até ao senhor!
- Eu tenho uma idéia do que aconteceu. Imagino que tenham feito um levantamento, via internet, de nomes iguais, e como o meu amigo aqui é cliente e fornecedor de um laticínio de lá, pode ter sido localizado assim. Não vejo outra explicação, concorda? – eu disse
- Pode ser que sim, lógico! O caso de vocês não é o primeiro, talvez nem seja o último. O fato é que estamos “convocando” a todos os “Josés Carlos da Silva” possíveis, até que possamos chegar ao verdadeiro devedor.
- Pois é, mas nós viemos de muito longe, são mais de 500 kms., mil ao todo, ida e volta. Pagamos pedágio, jantamos na estrada, dormimos em hotel, sem contar que me contratou para trazê-lo, e a viagem ficou bastante cara, pois cobro R$-0,65 por km. rodado, e ainda vamos almoçar. Considerando-se que ele não teve qualquer culpa nessa história toda, você acha justo que saia perdendo pelo menos mil reais? – perguntei.
- Óbvio que não, ora! Pelo menos, vamos ressarcir todas as despesas, e para tal, basta que o senhor assine um recibo no montante gasto! – admitiu ela.
- Bem, são duas diárias minhas, mil kms. rodados, almoço e janta, pedágio e hotel ... dá um total de R$-1.120,00.
- OK, vou mandar que façam o recibo ... seus documentos, por gentileza?
Enquanto aguardávamos, o meu companheiro falou que eu tinha exagerado um pouco na conta, mas o convenci de que não, e logo me trouxeram o dinheiro e o respectivo recibo, arredondado para R$-1.200,00. Assinei e fomos embora prá casa.
Ao chegarmos na fazenda dele, bem à tarde, lhe entreguei todo o dinheiro recebido do banco, já que ele tinha pago todas as despesas da viagem, apesar de não querer aceitar, mas achei por bem que fizesse dessa forma. Quando já ia saindo, havia uma manada de bezerros sendo recolhidos do pasto, para serem tratados no cocho e passarem a noite fechados no curral, era para que não se misturassem com as mães durante a noite. Foi quando comentei, admirado:
- Nossa, xará, que bezerrada linda, hein!
- Ah, você gostou, José? Então, pode escolher uma bezerra para você.
- Ora, você sabe que eu gosto de ver animais bem cuidados, como os seus! Acho isto uma coisa de rara beleza, no entanto, amigo, não tenho nem onde deixar sequer uma bezerra, já que moro de favor na fazenda do meu primo, você sabe disso! Apenas, gosto de ver, principalmente, estas “cruzas” de girolando com guzerá, são lindas!
- Isto não é problema! Pode deixá-la aqui, até decidir o que fazer com ela, mas faço absoluta questão de que aceite, viu?
- Não precisava nada disto, e você bem sabe, mas, já que insiste, pode ser aquela mais novinha? Aquela escurinha, com a máscara branca, ali, oh ... – respondi, apontando uma criaturinha de poucos dias de vida.
- Ela é sua, José, e você poderá deixá-la aqui o tempo que quiser, tá bom?
- OK, assim que tiver uma fazenda, eu levo a “morena” daqui. Obrigado, hein!
Passaram-se alguns anos, eu nem morava mais na fazenda do primo, já que retornei à cidade grande, após cinco anos ali, mas sempre ia até lá para visitar os muitos amigos que deixei. Quase não me lembrava mais da “morena”, nessas alturas já uma vaca formada e viçosa, e que tinha dado duas crias, uma fêmea e um macho. Segundo os antigos costumes, desde os tempos de meus avós, os machos pertenciam ao dono da fazenda, assim sendo, eu tinha duas “cabeças”: a vaca e uma novilha beirando os dois anos.
Foi então que o meu amigo e xará pediu que eu as retirasse de suas terras, porque havia cumprido com a sua promessa para comigo, e bem, com certeza, logo pensei. Assim, conversei com um dos primos, que aceitou e foi retirá-las, levando-as para a sua fazenda, para serem criadas “de a meia”.
Passado pouco mais de um mês, o tal primo me ligou, dizendo que a minha vaca havia brigado com uma das suas, e que, por ser de maior porte, veio a quebrar o pescoço da outra, matando-a no ato. Para que não ficasse no prejuízo por ter me ajudado, acabei dando-lhe as duas, e pronto. Também, prá que eu queria ter duas vacas, se não possuía nem um palmo de terra?
Infelizmente, este meu amigo já “se foi” daqui, mas guardo dele ótimas lembranças. Descanse em paz, meu xará! Você foi um dos bons que conheci!