O velho e o menino

O velho. Mancando, tomava cuidado para não acertar o dedão do pé com a bengala. Trajava uma calça maltrapilha, cheia de remendos e uma blusa velha da mesma cor, cor de nada. Poderia resumir-se ao nada. Era como sua vida havia sido até então. Andava à beira da estrada, bengala em uma das mãos; a outra coçava a barba comprida, já esbranquiçada, culminando num conjunto nada harmonioso com os cabelos ralos.

Enquanto andava, pensava na vida; aí sim tomava cuidado redobrado para não acertar o dedo do pé. Pensar na vida era frustrante e perigoso, precisava ao menos preservar essa parte de seu corpo, uma das poucas coisas que haviam lhe restado.

Em suas andanças diárias sentia o gosto amargo da poeira deixada para trás pelos carros que passavam em alta velocidade. Já fazia parte da nuvem suja que se formava no ambiente. A cada veículo que o ultrapassava, mais pó adentrava em suas narinas, contaminando seus pulmões, embargando sua visão. Multiplicavam-se as chances de acertar o dedão do pé.

Fazia o mesmo trajeto todo dia, da venda do português, onde ajudava nos embrulhos, até sua casa. Naquele dia, sua distração era contar o número de carros. Já eram 32. O 33° chamou sua atenção. O menino. Seu pé se misturou ao chão, não sabia o que era o quê, acertou o dedão com a bengala. Olhou para frente, prolongando o minuto que temia em se estender na iminência da dor, seus olhos se esbarraram como que quase por acaso com os do garoto que se divertia olhando do banco de trás do carro a poeira que levantava rente à janela.

Foi então que o velho lembrou de quando jogou tudo para o alto na última tentativa de ser feliz. Foi morar naquele lugar longe, pé descalço, chão de barro. Depois da morte da esposa, nada mais fazia sentido. Queria sumir do mundo e, de certa forma, conseguira. Ainda tentou criar o filho, na época ainda uma criança, mas não teve forças para vencer os desafios que a vida lhe impusera. O garoto foi morar com a madrinha. Ele, o velho, perto da venda do português. Sumiu do mapa, nunca mais teve coragem de voltar à antiga rotina que lhe trouxera tanto sofrimento.

Os pequenos olhos azuis continuaram astutos observando, pela parte de dentro da janela do carro, o velho comedor de poeira cada vez mais longe. Os olhos viraram em direção ao avô, sentado ao lado, e perguntaram com a inocência de uma criança: “Por que ele está sozinho e sujo na estrada?”. O avô sorriu e não deu importância. O garoto se resignou com o silêncio e, sozinho, pensou em como aquele velho lembrava seu pai.

Livia Torres
Enviado por Livia Torres em 27/04/2012
Código do texto: T3636696
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