Suas mãos, pequenas e marotas, já denunciavam a vocação. Era sorrateira, nas ações e nas palavras. Dava vôos rasantes em tudo o que podia observar com aqueles lindos olhinhos. Nada, mas nada mesmo, lhe fugia à percepção gatuna.
Pele branca como a neve – mas que droga, todo mundo escreve essa parca frase. Os olhos só não eram mais verdes porque o artista que a pintou saiu para beber, e nunca mais voltou. A boca, de um tom rubro e pecador era a própria sedução. Silhuetas de tirar o fôlego e a razão, do mais puritano dos homens. Aquele passar de língua entre os lábios quando a sua mente arranjava um tempinho para pensar na vida, era a febre em forma de fantasia.
Nem bem completara os 12 anos – e não me pergunte quando –, já conhecia as falcatruas da vida maliciosa do corpo. Também pudera, professora igual a mãe estava para nascer – os embarcadiços que o digam.
Suas vestes, meio recortadas, insinuando uma inocente leveza do ser, nem precisavam de decotes para ajudar os homens, que por ela passavam, a elucidar os seus mais vastos e impetuosos pensamentos.
“O pudor, na verdade nunca existiu. Sempre foi dito de coragem na boca de um orador qualquer; desses que provoca o espírito com falsas ladainhas pronunciadas ao vento, ou nas explicações filosofais dos invencionistas do tempo; que se aproveitam em sua existência, das ingestões alcoólicas ou devaneios nasais. Dê ao pobre homem (animal) uma ínfima oportunidade, e ele lhe dará pecado, talvez o único sentimento concreto do ser”.
O andar; esse sim, era um pouco desvairado, auxiliado por um pequeno arrasto da perna esquerda. Tudo em razão daquela bela fuga pela janela. Se não fosse a altura, misturada à corda do varal. Tadinha, se embolou toda e caiu encima de uma cobertura de telhas. Fez uma avaria no corpinho ao precipitar-se ao solo.
No hospital, os médicos insistiam para que ficasse por mais tempo – para se tratar, é claro.
_Fique, não dá trabalho algum. Fique mais um pouco que precisamos curar as enfermidades na sua totalidade!
Eram essa as palavras; dos médicos, dos enfermeiros, do faxineiro – mas que Ala era essa, tão masculina? –, e também da enfermeira-chefe – quase tão masculina.
Se aquele hospital não fosse dirigido por freiras, talvez Marcinha até morasse por lá. Poderia inclusive curar melhor a sua perninha.
Era um encanto aquela menina. No corredor do hospital, corria a abraçar a todos. Ninguém percebia que a pobre menina vivia só de avental – essa frase foi mesmo idiota.
O dia da partida foi triste. Despedidas com fortes e demorados abraços, e como se o pecado – aquele sentimento concreto –, estivesse indo embora e o remorso chegando de longa e demorada viagem; beijos, só na testa.
O céu enubreceu, chovia canivetes abertos naquele hospital. Há quem diga que o faxineiro após horas trancado no banheiro, emitindo sons de difícil compreensão para aqueles que nunca demoraram muito no tal cômodo, se enforcou com retalhos do avental deixado por Marcinha. O seu perfume maroto ainda percorria aquela azulada fazenda – o sabonete e o xampu importados chegavam aos montes –, e o revezamento para dar-lhe banho tinha precisão britânica.
O tempo passou...
Já na rua, continuava a sua vida em total normalidade. Não aprendera nada, nenhuma lição. Ah; fora as do hospital. Lições e conselhos, sobre a sua conduta – não pare porra, não pare, você é especial –, e sobre o seu futuro também.
Certa vez, Marcinha, na frente de um bar, presenciou uma briga.
_Ela é minha, e ninguém tasca a mão.
_Minha; dou tudo para ela e mato quem encostar um fio de cabelo naquela vadia.
Vapt, vupt; um se esgueirou pra lá, outro caiu pra cá. O de lá com a faca na mão, tremendo que nem vara verde, sorveu o último gole e correu – é engraçado sempre se ouvir a sirene após um ocorrido desses –, o de cá; no chão. Sangue era mato naquele local.
O português e suas putas – aos montes na boca – , reclamava da sujeirada toda.
Ninguém viu, ninguém quis falar sobre o assunto.
Marcinha viu, mas também nada falou.
Chocada? Não; encantada com tamanha prova de amor.
Quem seria aquela mulher cujo fascínio dizimou a vida de um homem e fez do outro um fugitivo?
...Nem mamãe, que tantas flores e bombons já recebeu, chegou a tanto – pensava ela –, nem mamãe.
Resolveu refletir melhor sobre o seu futuro. Sentou em uma guia de calçada, bem destrambelhada, a ponto de fazer um garoto, que por ali passava de moto, meter o carão no poste da esquina.
Pensava na vida, no dom que Deus lhe deu; de sobrepujar os mais lentos de reflexo, nos conselhos daqueles maravilhosos homens de branco, na bebedeira da mãe.
Seria uma mulher especial de agora em diante, mais do que especial; seria “Fashion” – As fashions usam calcinha? Ah, deixa pra lá.
A maior de suas preocupações era como começar. Do zero não podia, pois o zero já havia sumido de sua vida há muito tempo.
Mudaria a estética, o seu jeito de se portar perante todos – os homens, é claro.
Arrumou um dinheirinho – fácil, fácil –, e foi no salão de beleza dar uma rebocadinha na cara. Tinha forró logo mais à notinha. Passou na loja de “1,99” e comprou uma saia nova e uma “baby lock”, e ficou feliz; comprara também a sua primeira calcinha – não sabia ao certo porque, mas isso também a deixou feliz.
Aquela noite era especial, o céu estrelado denunciava a chegada de seu décimo terceiro aniversário, aqui, na crosta terrestre.
Um anjo de candura – e que anjo. Quem disse que não tem sexo?
O triângulo, o pandeiro e o conjunto. A festa havia começado e com a sua chegada todo mundo se encantou. Ganhou até um abraço da mamãe, que emocionada, lhe desejou boa sorte.
...Minha linda filha, ainda vai arrumar um bom pretendente, se Deus quiser – pensava a quilometrada mamãe.
Mas olha lá quem está perto do barzinho; o faxineiro, ele não havia morrido.
Marcinha se aproximou dele e o cumprimentou.
Aquele homem, que retalhara todo o aventalzinho de Marcinha no hospital, enrolara no pescoço e amarrara no encanamento que passava no teto – hospital público - subira em uma cadeira e, azarado que era, ao saltar, quebrou o cano d’água, a cadeira e a cara também, e ficou com uma cicatriz no rosto – uma cicatriz que o identificaria em um futuro bem próximo, ficara ali embasbacado com tamanha beleza.
Coitado do moribundo, perdeu emprego, perdeu família e só o que lhe restava no bolso eram míseros 20 mangos que sobraram das contas que recebera do hospital – a mulher rapou tudo e fugiu com um velho gordo e asqueroso; advogado que os divorciou – e um naco do retalho do aventalzinho de Marcinha que guardava com um carinho assustador.
Ao ver aquela princesa, não exitou em chamá-la para dançar e beber alguma coisa, bem quente – era mais barato.
Não era bem isso que Marcinha esperava daquela noite, mas já era um começo, afinal, aquele homem também tentou se matar por amor.
Dançaram, dançaram e dançaram. A perna de Marcinha – a esquerda – nunca foi tão ágil. A menina tornara-se uma verdadeira bailarina.
Já era quase meia-noite e para não acabar o encanto, aquele pobre homem pediu a ela que o acompanhasse a um lugar mais calmo para conversarem – mas o corpo fala?
Saíram abraçadinhos e foram até a esquina conversar.
Naquele toque e não toque, algo no ar. Uma revelação, um momento único no pensamento humano.
Já era tarde demais e insuportável para o pobre ex-faxineiro ouvir aquele não.
Casar não estava nos planos momentâneos de Marcinha – linda menina –, ainda inexperiente da vida.
“O destino é sábio, arruma as pessoas, leva-as aos lugares certos e proporciona os encontros mais impressionantes; daqueles que nem os mestres das ladainhas e nem os filósofos chamados ícones de nossa pobre história podem explicar – é que as vezes falta grana, bebida e algo mais; aí eles ficam sem inspiração para falar besteira”.
Marcinha não teve tempo de gritar, ficou ali mesmo, ao solo. Dessa vez o vergalhão do muro agüentou o peso daquele pobre e desolado corpinho – Ah; os retalhos eram os mesmos que ele conseguira no quarto de Marcinha, lá no hospital.
O homem corria desesperadamente, como se quisesse ser capturado. Afinal, na cadeia, contaria a história de um belo amor.
A mãe e os outros curiosos, mordiam-se em ira blasfemando contra os céus e gritando:
_Que vida é essa, meu Deus.
...É essa mesmo – dizia uma nuvem com cara de Deus.
Outros já a achavam parecida com um político; outros não achavam nada porque não haviam bebido nada.
Marcinha ficara por ali mesmo por um certo tempo; até a técnica chegar. A sirene, essa se ouviu também na mesma hora do acontecido – que precisão, heim!
Quanto ao ex-faxineiro; ele está preso na penitenciária, em regime fechado – por enquanto.
Dizem as más línguas que o advogado que a mãe de Marcinha arranjou foi espetacular na defesa da pobre menina. Também pudera, com uma noite daquelas que precedeu ao julgamento.
Marcinha não virou um anjo não, e morreu sem calcinha.
O ex-faxineiro, nas noites lindas de luar, conta seu caso para os mais sofridos da cela – os cornos –, e mostra a sua prova de amor, que guarda até hoje com carinho. Cheira, cheira e guarda, aquela calcinha, vermelha como os lábios de Marcinha.
Anos depois, aquela mulher sofrida, para não envelhecer só, resolveu ter outro filho (filha) e deu a ela o nome de Márcia para nunca esquecer da linda filha que o destino levou.
Não nasceu um anjo de candura e nem loira, pois o pai era filipino, mas com um pouco mais de zelo, não mancaria da perna. Dessa vez – pensava a mãe –, não cometeria os erros de antes. Ensinaria bem mais cedo toda a perversidade do mundo para aquela pobre menininha.
“O homem, é um ser biológico que cria fantasias durantes a vida, e a elas designa nomes, que mais tarde viram ciências do saber – tudo resultado de processos químicos e conexões, é claro. Os mais espertos, dotados de percepção, convocam o inexplicado e brindam a infelicidade do mundo levando aos ignorantes suas bobagens sobre o que foi, o que é e o que será, do pobre Ser, carimbado sem satisfação alguma no mundano cenário dos dias. Não bastaria viver?”