O CASTIGO
Cheguei ao céu em uma segunda-feira insípida e monótona, daquelas em que não se consegue, ao menos, levantar da cama a tempo de assistir o jornal da manhã antes de sair para o trabalho. Cansado e ainda desnorteado pela longa viagem (Já ouviram dizer que o céu não é perto? É a mais pura verdade), segui por uma estrada deserta e sinuosa que parecia nunca ter fim. Fiquei aliviado ao avistar, de longe, uma grande muralha, sustentando um imenso portão dourado, cercada por um grande lago artificial.
Na entrada, encontrei São Pedro, encostado ao portão. Ele parecia um tanto desconfiado, porém foi amável e solícito. Aproveitei a oportunidade para tirar uma velha dúvida:
- Meu bom velho, conte-me uma coisa, é verdade aquela história sobre o senhor e as virgens?
- Que história? O povo da Terra ainda anda espalhando esses boatos com o meu nome? Preciso tomar providências, isto já está passando dos limites!
Logo percebi que tinha tocado num assunto um tanto constrangedor. Resolvi contemporizar e mudei de assunto. Não queria criar problemas logo no meu primeiro dia.
Fui conduzido a uma sala espaçosa, cheia de anjos, eles voavam para lá e para cá, todos eram muito parecidos, usavam uma farda branca e capacetes grandes e brilhantes. Uma recepcionista baixinha e meio vesga se aproximou e perguntou se eu precisava de ajuda.
– Sim, é o meu primeiro dia e eu estou meio perdido. – Respondi.
–Desculpa, normalmente teríamos alguém para te acompanhar e lhe mostrar as instalações, te ensinar todos os procedimentos e te apresentar os seus novos companheiros de quarto . Mas, hoje não é um dia qualquer. Temos uma visita muito importante.
– O que eu faço? Pra onde devo ir?
– O senhor vai assinar alguns documentos, passar no laboratório para colher algumas amostras, então, dirija-se à sala 1665 onde receberá uma senha e uma mala contendo sua farda e sua roupa de cama.
Depois de cumprido o ritual, segui corredor adentro à procura da sala indicada. Chegando à bendita sala, exausto pela maratona que me foi imposta, entrei sem bater. Era uma sala ampla, luxuosa e muito bem decorada. Mesas de jogos dispostas entre arranjos de flores e samambaias. Fez-se um breve momento de silêncio quando a minha presença foi notada. Um homem careca e gordo levantou-se apressadamente, deixando cair uma pilha de cartas ao chão, enquanto seu adversário, alto e esquelético, ria desvairadamente, e gritava triunfante:
– Ganhei mais uma vez! Ganhei mais uma vez!
– Porra, Gabriel, desse jeito não dá pra jogar! Toda hora entra alguém pra atrapalhar! Falou o careca.
– Desculpe Senhor, é que o pessoal da segurança está muito atarefado controlando os demônios. Eles hoje estão demais, já quebraram metade do Setor 07, estupraram nove das nossas anjas, comeram todo o suprimento de maná da nossa dispensa e ainda, urinaram na água benta que chegou ontem do Setor 19! – Respondeu Gabriel com cara de assustado.
– Amigo, você precisa controlar o seu pessoal. Toda vez que eles vêm aqui deixam a ‘mó’ zona pro povo do céu limpar! Você está pensando que isso aqui é o inferno? –Bradou o careca.
– Que é isso, parceiro, vai desfazer das ‘visita’? Assim enfraquece a amizade! – Respondeu o magrelo.
Enquanto isso, eu ia saindo de mansinho.
– Pra onde você pensa que vai? Pensa que é assim? Entra, atrapalha o nosso baralho, cria todo esse tumulto e depois vai embora como se nada tivesse acontecido? – Era o careca que, aos gritos, interrompia a minha fuga pela tangente.
Ao levantar-se, percebi que todos ou outros se curvavam aos seus pés. Foi aí percebi que tinha me metido em uma grande enrascada. O careca era chefe, e dos grandes! De qualquer forma, eu tinha um trunfo na manga, tinha descoberto um esquema de jogo ilegal no céu. Como um bom malando, resolvi tirar proveito da situação, fiz uma cara de mau, cruzei os braços e disse:
– Olha, chefia? Não se preocupe. Sei que o esquema aqui é ilegal. Pode ficar sossegado que eu não conto pra Deus o que está acontecendo aqui, combinado? Mas, vou logo avisando, também quero faturar um por fora!
Todos me olharam com expressão de espanto. E, depois de um breve silêncio, começaram a rir. Sem entender o que se passava, protestei:
– Vocês pensam que eu não tenho coragem, é? Vou dar uma passadinha na sala de Deus agora, e vou contar tudo o que vi aqui a Ele! Aí vamos ver quem é que vai rir no final!
– Você está maluco, garoto? Quem manda nessa porra toda aqui sou eu! – Gritou o careca!
– Como assim, você é quem manda? E Deus?
– Eu sou Deus!
Minhas pernas tremeram e meu corpo gelou. Tentava entender o que acontecia ali. Então perguntei com a voz embargada:
– E esse magricela aí, quem é? Jesus?
– Jesus?! – Outra sessão de riso tomou conta do lugar – Jesus fugiu de casa há mais de três mil anos, nunca mais tive notícia dele. Mandei meu pessoal procurar ele e a única coisa que encontraram foi essa coroa de espinhos aqui. Esse aí é o Diabo.
– O Diabo?!
– Sim, toda a terceira segunda-feira do segundo mês do ano, a gente se reúne pra jogar um baralho e botar a conversa em dia. É que, nesse tempo de globalização, precisamos diminuir as fronteiras. Estou construindo um novo mundo e esse processo da licitação das obras está sendo muito estressante. Estamos convocando um pessoal lá na Terra pra fazer as cotações. O Diabo se ofereceu pra ser meu sócio e estamos discutindo a possibilidade de abrir uma franquia no inferno. Aqui no céu a gente trabalha no final de semana e folga o restante dos dias. Hoje é dia de descanso e estávamos disputando algumas almas pra relaxar. Você estragou o nosso jogo e, como castigo, vou ter que mandá-lo de volta à Terra.
– Mas o senhor não tem receio que eu conte aos humanos tudo o que eu vi e ouvi aqui?
– Garoto, os demônios andam espalhando essa história pela Terra há séculos. Mas, quem você acha que vai acreditar numa coisa dessas? Pode ficar à vontade, conte todos os pormenores. Digo mais, vamos fazer um trato, seu castigo terminará no dia em que alguém acreditar em você. Te darei um bom lugar aqui no céu e uma parte do lucro na franquia do inferno. Porém, até lá, você viverá no Brasil e sobreviverá durante todo esse tempo com o salário de professor.
Ouvida a sentença, tudo ficou escuro e eu perdi os sentidos. Acordei numa cidade do interior da Bahia, onde vivo desde então, dando minhas aulas, fazendo greves de vez em quando e sempre contando esta história, na esperança que alguém, um dia, acredite nela e me liberte desse maldito castigo.