"o distraído lobisomem"

Há muito tempo... n´uma cidadezinha do interior do norte das Minas Gerais – Bela Vista – era o seu nome; n´um pequeno lugarejo de uns quinhentos habitantes, isso contando os habitantes de mamando a caducando – ou seja: do menor sendo amamentado até o mais velho da comunidade. Um povo pacato, bem humilde e trabalhador; para os homens, trabalho duro, na lida na roça, o sol castigando por volta de uns trinta e nove a quarenta graus a cacunda – nome que o matuto dá às costas – do infeliz; pura teimosia e necessidade e, não tinha outra forma de alimentar a família, sempre em grande número dentro de casa; para as mulheres, o trabalho doméstico, os afazeres do lar e vez em quando, capinavam o quintal, faziam a hortinha para o consumo da família e outros afazeres comuns, peculiares às mulheres n´um lugarejo como esse. Os ganhames – forma que expressão acerca dos valores que percebem pelo seu trabalho – muito pouco; para um povo hospitaleiro, dentro das condições reais de vida que praticam, a baixo do padrão normal de vida que se pode mensurar. Por muitas vezes, estive lá e conheci a realidade desse povo; muita gente boa, famílias honestas que estão lá ou pelo destino da vida ou simplesmente porque não têm como sair de lá por motivos financeiros. Povo sem muita pretensão de crescimento, mesmo porque pelo lugarejo não se têem como crescer. A festa tradicional anual, em meados das festas juninas, o levantamento de mastro; a única forma rentável e de socialização com outras comunidades que existe. Lá tem uma rua principal, ladeada de casas – muito simples -, um barzinho pequeno com uma puxadinha na frente para proteger a sinuca – meio de divertimento para os homens locais e ao final da rua, uns quinhentos metros, a igreja católica; onde aos domingos, religiosamente as famílias se encontram. Um calor e um poeirão de dá inveja a qualquer mortal. Ah! O campo de futebol de chão batido também faz parte e compõe o ambiente de laser daquele povo.

Segundo comentam - fui lá ouvi-los e trazer esse depoimento a vocês - existia uma pessoa um morador, nos arredores do lugarejo, no mínimo muito estranho pelo comportamento principalmente ao aproximar a quaresma.

Segundo comentaram os antigos e até a nova geração que atentaram para conhecer essa história/estória, realmente existia por aquelas bandas, um sujeito por alcunha de João Preto, homem alto, negro, de pouca conversa, cara amarrada, corpo mais para magro, analfabeto, muito trabalhador, sistemático e que morava sozinho n´um ranchinho próximo a mais ou menos um quilômetro do lugarejo; plantava seu próprio dicumê – comida - milho, feijão, fava, mandioca, sempre em pequena quantidade, somente para sua sobrevivência; valendo-se quando precisava de dinheiro, dos bicos que apareciam ofertados pelos fazendeiros adjacentes. Como não ostentava luxo algum; nem luz elétrica possuía, sempre utilizou a lamparina – também conhecida em alguns lugares como candinheiro ou candeia; a água, utilizava a do rego d´agua que passava no fundo do rancho, para tudo, nem filtrava para beber. Usava precatas – tipo sandália de couro artesanal - feito de couro de animais; seu feitio bem rústico – como teria que ser – sem condições financeiras não podia e nem gostava de usar outra que não fosse de couro. O pezão grande e grosso, mais parecia uma laje prêmio, dava até medo. Suas vestimentas sempre surradas pelo tempo e uso; eram de certa forma até o normal daquele povo humilde; mas o que chamava atenção é que ao entrar a semana santa / quaresma, era sempre visto com roupa melhorzinha; não que fosse nova, mas aparentava um estado de conservação bem melhor às que estavam acostumados a vê-lo. Isso chamava muito a atenção do povo. A pergunta era: Porquê somente na época da quaresma que se vestia assim? Ninguém; pelo menos não arriscaram me dizer; tivera a coragem de perguntar para ele; o risco seria muito grande, ter a antipatia dele, não compensava pagar prá ver. E, segue o causo...

Os nervos do povo da comunidade exaltavam, acirravam ainda mais quando da aproximação dos dias; sabidos por eles, que algo de muito, mas muito estranho aconteceria por aquelas bandas; isso era certeza; ficavam alertas . Quando já chegara a semana, onde tudo acontecia, o povo ficava atento não deixavam crianças nem bichos de estimação nem as criações novas dando sopa para o azar.

Como já era sabido, “a coisa” aparecia e comia mesmo! E, continuava o causo...

N´uma das vezes que estive lá, em prosa com o Sr. Piu; homem de muita credibilidade junto á comunidade, já contava com uns oitenta e dois anos de vida, conhecia todas as famílias e os descendentes também; pai de família e avô; quando da aparição da “coisa”, até ele, homem destemido, corajoso não teimava; nas noites, procurava abrigo dentro de casa e não deixava os seus saírem para nada até o amanhecer. Pois bem... Conversando com ele, com muito jeito, pois tratava-se de pessoa desconfiada, logo pegou confiança em me dizer. Perguntei como acontecia o fato e ele, com aquele jeitinho humilde, franzino, de fala mansa e baixa, resolveu falar o que sabia: segundo ele, no dia da aparição, o João Preto sumia; ninguém via ele pelas redondezas da comunidade, não ouvia barulho também lá prás bandas do ranchinho dele, tudo quieto. Parecia que ficava dormindo o dia todo.

Ao escurecer – principalmente na sexta-feira santa – ele vestia a roupa limpa e melhorzinha que tinha, calçava as precatas, e, procurava um local onde porcos, cachorros, haviam deitado e rolado; observava o lugar e tirava toda a roupa, ficando totalmente nu; virando-a pelo lado das avessas, dependurava-a em um poste da cerca, galho de árvore e etc; local que mais tarde, voltaria para apanhá-la. Pois bem... Nessa última aparição que o Seu Piu teve notícia foi muito hilário, inédito e virou uma anarquia só. O João Preto, colocou a roupa pendurada no poste da cerca; fez o que deveria fazer, rolou para um lado, para outro, gungunou algumas palavras e dentro de poucos minutos já estava possuído. Seu Piu dissera que era uma coisa horrível, arrepiante. Depois da transformação, levantava aquele mix de cachorro e homem; um bicho com pelos na ponta da cauda, em cima dos ombros, cabeça e um focinho longo, dando a parecer uma pequena tromba. Pés enormes e peludos também, garras grandes e fortes, orelhas grandes, bem grandes que ao movimentar-se, balançavam de um lado para o outro. A parte dianteira era mais baixa que o traseira; ficando desproporcional a parte de trás bem alta; como se um homem estivesse andando de quatro pés. Olhos grandes avermelhados e sonolentos, as ventas bem alargadas. E segundo Seu Piu, alimentava-se de tudo que achasse e fosse novo: porcos, cachorros, bezerros, crianças... um verdadeiro absurdo! Nessa última aparição que se teve notícias; depois de banquetear a vontade e barriga cheia; retornando para o local onde faria o inverso do processo para voltar ao normal; chegando lá não encontrara as vestimentas que havia deixado. Ficou furioso! Dava cada uivada! Urrava muito e balançava suas orelhas. Ah! Segundo Seu Piu, só existe uma coisa que acaba com o encanto: atirar com bala de prata. Outro tipo de munição não fazia nem cócegas! Se você atirasse com arma normal nele, as balas desviavam e não acertam. Outra observação que ele fez: o deslocamento dele é rapidíssimo, no piscar dos olhos ele muda-se de lugar. Continuando...

Ele ficou um bicho, literalmente; procurou as roupas, ainda incorporado e nada encontrou. O dia estava quase chegando e segundo os entendidos de lobisomem, o sol não pode pegá-los sem que esteja ainda como uma fera, quebra o encanto. Pois bem...

Quando o barrado do dia começa a aproximar na serra, os galos anunciavam o amanhecer; a fera correndo para cima e para baixo, querendo a roupa; o dia começa a espalhar seus primeiros raios de sol e rapidamente o dia ilumina a vida. Seu Piu vê o João Preto correndo totalmente nu nos fundos da igreja apavorado, desorientado, descendo em direção ao rio. Aquele homem alto, negro e magro, peladão; segundo Seu Piu, foi até a uma altura e não avistou mais ele.

Mais tarde... o proprietário do barzinho da sinuca, vai abrir a porta para mais um dia de trabalho e negócios, quando de repente... toma um susto! Um moço conhecido dele morador n´um sítio bem próximo ao lugarejo, deitado em cima da sinuca, bêbado; estava um verdadeiro pau d´agua. Tinha costume de embriagar-se e vinha no comércio completar a cota etílica. Bebunzaaaaaço mesmo! Ele cutucou o bebum com um taco da sinuca e acordou-o com palavras nada amigáveis, pois tinha dormido em cima do seu snuck e a botina, havia sujado o feltro verde onde corriam as bolas. Pois bem...

Aí o dono do barzinho perguntou o que estava fazendo: O bebum, ainda atordoado com o álcool no corpo e na cabeça; disse que chegou e não encontrou o barzinho aberto, chamou até ficar rouco e ele não abria a porta para tomar a saideira. O dono perguntou porque ele não foi embora quando não abrira; e ele, ainda indignado com o dono, falou que estava cansado. Aí o dono do bar, olhou assim, n´um lado da sinuca e perguntou ele: isso aqui é seu? Ele com os reflexos ainda lentos, olhou assim preguiçosamente e balançou a cabeça, demonstrando que não era dele. O dono do bar ficou fitando-o sem acreditar que não se tratasse de roupas dele. N´um repente, parece que o cérebro voltou a funcionar e disse: Ah ! Cê ta falano dessas roupa aqui né? O dono do bar responde: Isso mesmo, não é sua? Ele fala: Ah não! Onti a noite quando tava vino prá cá, incontrei elas pindurado no poste da cerca e pensei qui alguém tinha esquicido lá e truxe. O dono do bar ficou assim desconfiado e dizendo falou para o rapaz: mais tarde vou tirar isso a limpo, pode deixar! Pegou as peças de roupas com uma vara de aça peixe, e botou-as n´uma sacola. Mais tarde, lá para as oito horas, foi até a casa do Seu Piu e chamando-o falou a ele que sendo o mais velho do local e conhecendo todo mundo lá, se ele reconhecia aquelas roupas? Seu Piu olhou, revirou e depois disse: É minino; parece qui é de João Preto! Parece dimais ! E onti eu vi ele correno sem ropa; fui até atrás dele mas sumiu lá na baxadinha. O dono do bar cismado, não quis mais nem tocar na sacola plástica e afastou-se preocupado. Seu Piu, com aquela sacola na mão, segundo ele, levou-a até o fogão a lenha e queimo-a. Curiosamente, disse que exalou um cheiro esquisito que ele naquela idade nunca tinha sentido antes. Um cheiro de enxofre misturado com cheiro de carne queimada.

Certo é que, nunca mais avistaram o tal João Preto pelas redondezas e, seu ranchinho ficou lá até o tempo lhe derrubar. Até hoje, ninguém teve a coragem de pelo menos passar perto do lugar onde morada. O lugar ficou sinistro... Ta lá... do mesmo jeito que deixou; quem sabe um dia volta para buscar seus pertences...