Assombração

Estava novamente a perguntar-se: será mesmo? Ele que naquele trecho muito passou, nunca viu nada. Logo hoje não poderia voltar. Inadmissível. O tempo engrossava, nuvens escuras, espessas. No relampaguear, veria. Não viu. Novamente. E vulto, apenas. O breu era soberano sob a figueira avançada em idade. Montado estava .Redomão. Espantado. Orelhas emparelhadas à frente atentavam ao menor bulício. Assustado o tal muar. Soprava forte. Desassossegada. Teimando afastar-se. O problema é que pensariam dele, Augustão. Que recuava ante o perigo, medroso, não era homem. Mas era.

Por mais que fosse o medo, não seria maior que a vergonha de voltar. De não prosseguir e sofrer gracejos. De ser digno de risos. Passar à par da casa do Manezinho, era arruinar-se em reputação. Faria buchicho, maledicência. Depois de estar à metros da própria porteira? Quase em casa? Dali, lá, riscava em cinco minutos. Fazer aqueloutro caminho, volta de hora e meia? Não. Pra ele não. Onde já se tinha visto? E os cachorros? Malditos. Porque não andaram de companhia? Logo hoje. A trovoada logo em cima permitiam as geladas primeiras gotas, de bom tamanho. Vento, frio que só, soprando, chacoalhava o mato que das duas bandas cresceram alto transformando o trecho num corredor escuro. Puxou na memória as estórias antigas do Zé Pimenta, coisas contadas, passadas de boca em boca. Dizia que a tempos um homem deu se cabo no galho da figueira por sofrer abandono. Não fez uso nem de corda, serviu-se de um dos cipós. Bem de frente a árvore estava lá, volumosa, a pouca distância do portão. Opondo resistência aos largos anos. Cipós pendurados, levavam à mente imagem. De fato sombrio. Pela escuridão, não os via, mas sabia deles.

No caminho da cidade falaram disso, coisas de assombro, de aparição, almas do outro mundo. Conversa pra boi dormir, de gente antiga pra fazer criançada aquietar. Seja como for, vai que seja. Manezinho, moreno, franzino, o zombador do grupo, todos os motivos o levava a mofar, seja quem fosse, nada escapava de seu olhar humorístico. Saíram do lugarejo tarde. Coruja, mais jovem, de potro ligeiro à frente vinha. Certo que a mãe estaria no pé da janela. É hoje! dizia. Zé pimenta, mais velho, pra lá de meia idade, sério e de palavra, contava coisas da vida, dos tempos passados, minucioso nos relatos, de falar compassado e narração demorada. Fatos acontecidos pela redondeza, na maioria aparição. Davam ouvidos. Respeitosos. Não às pressas marcavam estrada. Se ao menos imaginasse, Augustão, taparia os ouvidos. Eram companheiros. Trucadores, peixe frito e bebidinhas. Todos enchidos iam mesmo, meio que de manso. Tranquilões. De quando em vez, um, parava à desaguar. Só coruja, afobava, tinha urgência. Saíra cedo. Prometeu não demora. Era de mãe rígida.

De bem longe se viu relampejos. Apuram os trotes. Tinham mais que hora pra percorrer. Na encruzilhada cruzaram direto. Nada de costumeira. O caminho cortaram por atalho. Pela casa do manezinho encurtava. Num carreador manso de nível, dispersa Coruja. Entre recomendações e vai com Deus se despediu dos demais. A pouco chegaria na casa. Perto, e de animal ligeiro, já devia estar em torno de minutos.

Tocou-se em caminho, os outros. O tempo mais aproximado já fazia zoada. E os animais sentiram das esporas os patos-ferrão, arremedavam Coruja no afobo. No aperto dos galopes desviou Zé Pimenta. Pegou sua entrada de porteira. Os outros dois afincaram-se.

Outubro. Calor, estiado. Quando era de chover, chovia, vinha forte, tempestuosa. Levava o que se tinha tido. O vento tombava parte da lavoura, a outra parte as pedras derriçavam. Cortaram o quintal de Manezinho. O rumo dava por lá. Nem se apearam. Augustão tava apressado. Negou-se à esperar o temporal. Disse não ter medo. O outro insistiu. Falou ser mais o perigo das estórias do Zé Pimenta. Se riram. Quis sua casa. E desapareceu á galopes. O caminho seguia beira cerca um bom tanto. Descendo num bebedouro ao rio, passando por raso estreito e subia em picada que conduzia até à entrada da porteira. Fez fácil o trajeto. Mula robusta. Espaventosa. Com brutalidade seguia rapidamente. Acudia, volta e meia, o chapéu prestes a ser furtado pelo vento. Vento mesmo. Ventania. Já bem próximo da entrada, refuga, a mula. Enseba. Augustão insiste. Pragueja. Não entende o motivo. Não via razão. Até que viu. Arrepiou-se. Cessou bulia. Por um minuto aquietado. Pensativo. Que será?. Sondou, tratou de conhecer. Forçou na visão. Mesmo ao relampejar não pode distinguir. Tenta retomar passo. Nada. A mula velhaca. Estaque. E as estórias do Pimenta... Bem no lugar.

Agora cá estava. Pra tomar decisão. Indecisão. De voltar recusava-se. Tinha o Manezinho. Nunca mais esqueceria. Riria até morrer. Seria mote para Alcunhas. Seguir?. O animal, hirto, se negava à ordem, sem voz. Só no cutuco leve da espora no vazio. Entre sapateio e refugo desaba água. Chovia de cima e de lado, deitada pelo vento, que por pouco não sacava-o do de arreio. Teimou. Fez outra tentativa de ir. O animal ensaiou arredar. Levantou -se nos pés de trás. Azedou de vez. Augustão resolve. Era homem ou não era?. Se apeou. Toma o cabresto. Acautelado. Bem ajuntado ao mento. O vulto lá. Não cedia. Lembrou-se dos santos. Nem era de reza, mas resmungava algumas metades. Até duvidava de fantasmas. De que fugia sua coragem?. Ameaçou passo, o animal aluiu. Puxada, seguia. Deu penso a xingo. “...Mula do cão...” Mas refreou-se. Não estava só a mula arisca. Uma chuva de dar fim ao mundo. Era capim que se dava à balanço, trovão, aguaceiro, barulhada, e um friozinho medroso no espinhaço. Não bastasse isso tudo, agora era apedrejado de gelo. Protegia o rosto de chapéu. Aturava na marra. Deu outra paradinha, analisou novamente. Em tal altura, tanta água, tirara a curva ascendente na aba do velho chapéu. Desenvergava. Enquanto ele, Augustão, afigura-se ao pequenino augustinho de, anteriores, três décadas e pouco. Estava quase querendo, ainda não queria, retomar passo quando o vulto se moveu. Pareceu maior. Correr não pode mas, visto que, queria. Nenhuma das pernas teve iniciativa. Entornou. Das pingas, da cervejada, soltou-se, quente entre as coxas. É agora! Pareceu cessar, por um segundo, tudo: respiração, coração, vento, chuva, pedra e mula. Na cabeça passeou-se quase tudo de pensamento. Era o tal, abandonado, o morto dos cipós. Quereria rezamento, aliviação, enchê-lo de assombro, o quê? Nem achou ser alucinamento. Atravessou na estrada o bendito vulto. Fora da sombra da figueira um relâmpago esclareceu o enigma. Conheceu. Desordeira. Lhe botaria canga logo ao amanhecer. Não fosse ela nem teria molhado. Não havia cerca que segurasse esta maldita. Salva estava pelo tanto leite que dava. Teve que rir ali, só. Ficar calado disso pra todos. E fez cara de brabo novamente. Só olhou a mula, que parecia rir dele também e achegou-se. Desapertado.

DIERLEY FERNANDO
Enviado por DIERLEY FERNANDO em 16/04/2012
Código do texto: T3616054
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