A PLATAFORMA POLÍTICA

Joãozinho, Juanito, Jonhy, Jean, Joca, era tudo a mesma coisa, ele atendia qualquer um, de boa. Só ficava bravo quando alguém o chamava por nomes femininos, Joaninha, Juanita, Jeany, etc., apesar de ser homosexual assumido.

Vivia no centro da cidade, onde mantinha um quartinho numa pensão de curta permanência, em troca de ser o “recepcionista” noturno do estabelecimento, e que considerava como o seu "matadouro", pois podia locá-lo à vontade, ou então levava os seus próprios clientes até lá. A maioria desses era formada por pessoas sem nenhum dinheiro, como os moradores de rua e os rapazes mais jovens, que o procuravam para “aliviar” suas necessidades sexuais.

Se era à noite, estando no exercício de suas funções como porteiro, ele não se arredava do local, de jeito nenhum, apenas levava o “freguês” para trás do balcão e lhe fazia um generoso “boquete”. Ou então, dependendo do movimento estar fraco, abaixava a calça e a cueca, postava-se de joelhos em cima da cadeira, quando era penetrado e se regalava também. Nesse período, os seus aposentos estavam sempre ocupados por algum casal de maiores posses, e que exigisse higiene e privacidade, no que se esmerava.

Durante o dia, dormia até por volta das doze horas, depois do almoço, num bar ali perto, também cedia o quarto para que os comerciantes da região levassem suas funcionárias para fazerem uma “horinha extra”, pelo que cobrava bem, permitindo que mantivesse algumas regalias, como as duas cervejas de todos os dias. Nos intervalos, fazia a sua costumeira “caridade” com aqueles que o procuravam e não podiam pagar por um programa.

O patrão era um turco gordo e sovina, solteiro por convicção, que era para não ter que dividir os seus ganhos com mulheres ou filhos. Já idoso, há muitos anos se “servia” dos préstimos de Joca, inclusive para fazer sexo de graça. Chegava por volta das sete horas da manhã, recebia e conferia a féria, que metia nos bolsos da calça e do paletó de brim, e ficava na recepção o dia inteiro, sem sair nem para almoçar. Também mantinha uma empregada durante meio período, para cuidar da faxina e das roupas de cama, que eram trocadas dia sim, dia não, a não ser que ocorresse algum “acidente”. Mesmo assim, se desse para “limpar” somente a parte mais afetada, muito melhor, porque evitava o desgaste mais rápido das fronhas e lençóis, além do consumo de sabão. Ou seja, o homem era um ferrenho “mão de vaca”.

Acontece, que o tempo passa para todos nós, e disso ninguém escapa, não há dinheiro que possa resolver esta obra da natureza, e as pessoas envelhecem, naturalmente. E assim aconteceu com eles, também. Certo dia, já bastante doente, o dono da espelunca chamou o João ao quarto de hotel em que vivia, dizendo-lhe:

- Pois é, meu caro! A gente luta uma vida inteira pelo maldito dinheiro, e agora ele não me serve para mais nada, já que estou prestes a partir desta para uma vida melhor. Possuo um patrimônio respeitável, e nem tenho parentes, nem amigos mais próximos, e que possam tomar conta de tudo, a não ser você e a Isaura, que sempre foram os meus fiéis servidores. Se eu morrer e não tiver herdeiros, tudo vai para o governo, isto é da lei, mas não é o que eu acho de direito, entende?

- Olha, sinceramente, não estou entendendo nada do que o senhor está falando, patrão. Eu e a Isaura, o que fizemos foi cumprir aquilo que a consciência nos mandou ... – disse João, tentando encerrar o assunto.

- Tudo bem, então, fique calado, apenas me ouça, ta bom? Por favor! Como já lhe disse antes, não quero que os imóveis e o meu dinheiro caiam nas mãos desses políticos descarados que estão por aí, neste país. Assim sendo, estou lhes deixando tudo o que tenho, conforme mandei constar no meu testamento, na forma da lei. Ah, mas existem algumas condições, heim!

- Tudo bem, mas ...

- Me poupe, meu caro! Já lhe disse que o meu fim está muito próximo, e que fiz de você e a Isaura os meus herdeiros universais. Quanto a isso, não lhes permito quaisquer tipos de argumentos, certo? Se não quiserem usufruir dos meus bens, podem dispor deles como melhor lhes aprouver, só não quero brigas e intrigas. Portanto, podem dividir todos os bens que estou lhes deixando, conquanto tudo seja feito em perfeita harmonia.

- Por mim, tudo bem ...

- É, mas existem as condições que terão de cumprir! A primeira é que continuem mantendo a “casa” como sempre foi, pois ela será o sustento de vocês pelo resto de suas vidas. Quanto aos outros imóveis que lhes deixo, não me interessa o que farão deles, só não poderão vendê-los antes de dez anos. A outra condição é que você se case com a Isaura, e só assim poderão tomar posse da minha herança. Ambos são solteiros, não é mesmo?

- Ah, patrão, isto é muita sacanagem! O senhor deve estar brincando, não é?

- Absolutamente, não! Já conversei com ela, ainda há pouco, e ela topou, mesmo porque, tudo continuará do mesmo jeito, como está , já que os dois gostam da mesma “fruta”, certo?

- Quanto a isto, é verdade, sim, senhor!

- Então, rapaz? Você tem duas opções: não aceita e tudo cairá nas mãos do governo, ou topa, e poderá garantir o seu futuro, entendeu? Pense bem. Você já passou um bocado dos seus cinqüenta anos, não é mais o mesmo de dez anos atrás, concorda? Se a “pensão” deixar de existir, e deixará, com certeza, se cair nas mãos sabe-se lá de quem, como é que vai se virar, hein?

- É verdade, o senhor tem razão! Se a Isaura topou, nada tenho a perder, né?

- Isto mesmo! Só assim deixará de ser o João “P... Véia”, como alguns já lhe chamam, tornando-se um respeitável proprietário, não acha?

- Sem dúvidas, sim, seo Salim! Só não entendo uma coisa: por quê o senhor faz tanta questão de que eu e Isaura sejamos casados? Esta é a parte podre da questão.

- Simples, ora! Dessa forma, ninguém poderá jogar fora o patrimônio que lhes deixo! Você a segura; ela segura você ...

- Ta certo, eu aceito todas as condições.

- Ótimo, meu caro! Eu sabia que você não ia me “negar fogo”. Afinal, é uma pessoa despreendida de vaidades inúteis. Agora, além de desejar-lhe muitas felicidades, se é que posso, gostaria de sugerir que se candidatasse na política, pois tem um enorme potencial, além de ser muito conhecido nesta cidade! Isto não tem nada a ver com a herança em si, mas serviria para que se realizasse, ganhando mais respeito e destaque na sociedade.

- Deus me livre e guarde, seo Salim! Se depender disso para viver, vou acabar é morrendo de fome, viu! Prefiro continuar sendo pobre e sofrer todos os tipos de discriminação, do que enganar aos eleitores, como faz a maioria desses políticos.

- Bobagem sua, meu querido! O Jânio foi presidente, usando a vassoura como símbolo de “limpeza” na política; o Maluf usou o “rouba mas faz” para ser o prefeito e governador de São Paulo, além de deputado federal; o Sarney nunca morou no Amapá, mas se elege senador por aquele estado, vezes seguidas, enquanto continua sendo o cacique do Maranhão; o Collor se dizia o caçador de marajás, acabou cassado, e está aí como um dos senadores da república; aqui mesmo, em nossa cidade, aquele camarada malucão, que, vestindo um terno preto, andava pelas ruas arrastando uma fileira de ratos de plástico, e que foi eleito duas vezes vereador e uma vez deputado federal; etc., etc. Isto, somente para ilustrarmos o que estou lhe dizendo. Ainda deixei de citar alguns outros, tais como o cacique Juruna, o Ratinho, aquele cantor de forró, etc. Todos eles, à seu modo, tiram proveito da ignorância do povo, João!

- Isto é verdade, mas eu não sou malandro, e não faria uma coisa dessas!

- Claro, eu entendo! Porém, veja bem, você não estaria fazendo nenhum ato ilícito, concorda comigo? Isto é absolutamente legal, sabia?

- Eu sei, mas não tenho vocação para enganar o povo, esta é a diferença.

- Nem precisa! Bem, não posso insistir, mas fica a dica, ta bom?

- Obrigado, patrão, prometo que vou pensar com carinho sobre o assunto!

Foi assim que o “turco” conseguiu incutir tal idéia na “cachola” daquele coitado, sendo que aquilo ficou martelando suas idéias durante muito tempo.

Ao ser aberto o testamento do finado turco Salim, tudo tinha ficado bem detalhado, e assim, os bens foram divididos entre o João e a Isaura de maneira justa, sem que ninguém levasse vantagem. Além do prédio da pensão, coube a ele mais três casas bem localizadas, uma boa importância em dinheiro e um antigo prédio, onde havia funcionado durante muitos anos um hotel, que o turco preferiu fechar, já que lhe causava mais dores de cabeça do que lucros, por ser muito visado pela fiscalização. Recebeu muitas consultas sobre vender ou alugar o imóvel, mas recusou todas as propostas, pois tinha a intenção de montar ali uma "pensão" igual à outra, quando conseguisse "aliviar" os fiscais que o perseguiam, querendo propina. Com isso ele não concordava, de jeito nenhum.

Assim sendo, o João (P... Véia) decidiu aproveitar aquela idéia do patrão, porém, de uma forma meio diferente:

-"Hum, tenho visto vários tipos de plataformas políticas, como aquelas citadas pelo patrão, e as promessas nunca são cumpridas, mas o povo esquece logo dessas coisas, então, os "caras" voltam sempre com as mesmas conversas, se elegem de novo, e ninguém quer saber de nada."

- "Numa das maiores cidades de Minas, um candidato dizia em seus comícios que, se eleito vereador, montaria um restaurante para oferecer refeições de graça a todo mundo que chegasse. Claro que ganhou, mas depois se desculpou com os seus eleitores, alegando que até tinha tentado incluir o projeto na pauta do legislativo municipal, mas os demais companheiros não o apoiaram, coitado! Tal conversa foi repetida algumas vezes, sempre com o mesmo sucesso, já que os ingênuos acreditavam que o homem tinha boa vontade, pelo menos."

- "Então, considerando-se que não é do meu feitio mentir, nem enganar a ninguém, vou sim, me candidatar a vereador nas próximas eleições, todavia, durante os comícios só vou prometer aquilo que posso cumprir, e nada mais do que isto! Quem sabe se não consigo aproveitar aquele prédio do hotel, hein? Seria uma boa! Ah, mas eu nada entendo de política! Bem, em primeiro lugar preciso contratar um bom assessor, lógico! Poxa, mas nem conheço ninguém! A única certeza absoluta que tenho, é de que eu serei um político honesto, disso não abro mão."

A conseqüência de tantos pensamentos desencontrados, e algumas noites mal dormidas, procurando encontrar uma solução para todas as suas dúvidas, acabaram levando João a procurar um bom advogado. Também não conhecia nenhum, então, optou por pedir ajuda ao Dr. Luiz, da "inteira" confiança do ex-patrão. Este, ao ouvir os planos do novo cliente, quase teve um surto de risos, mas controlou-se, e disse que consultaria uma pessoa que talvez pudesse orientá-lo.

Alguns dias depois, chamou-o ao seu escritório, onde apresentou-lhe o "Dr." Jessé, que, por incrível coincidência, também era homossexual, o que achou ótimo, considerando-se as suas intenções de fazer funcionar outra "pensão", nos mesmos moldes da primeira. Além de tudo, o "homem" também tinha uma boa vivência política, por ter sido "assessor parlamentar" de um conhecido ex-deputado federal, em Brasilia. Portanto, seria um elemento chave, e debateram a questão em longas horas de muitos e sucessivos encontros.

- Então, meu caro João, a minha opinião é que você use os recursos financeiros de que dispõe para fazer uma boa reforma naquele local, adaptando-o às novas necessidades, certo? - propôs o novo guru.

- Concordo plenamente, embora saiba que vai me consumir quase a totalidade do dinheiro que possuo disponível, viu! Em todo caso, não sabia mesmo como aplicar tal quantia, visto que não quero comprar mais nada, entende? Só preciso ter uma garantia de que o senhor vai conseguir toda a documentação de que precisamos para funcionar, não é?

- Olha, isto é mais fácil do que você imagina! Deixe tudo por minha conta, eu conheço todos os "atalhos". O principal é que o local esteja dentro dos padrões aceitáveis, para obtermos os competentes alvarás de funcionamento, certo? No resto, sempre se dá um jeitinho, inclusive, molhando as mãos de algumas figuras. Fique tranquilo, eu vou ajudar você, tá bom? A minha única dúvida é de que a sua idéia possa dar certo, mas, não custa tentar, senão, nunca saberemos. Mas, pode acontecer, por quê não?

- Eu tenho a maior confiança de obter sucesso, doutor. Se perder a jogada, tudo bem também, porque não vou perder quase nada, já que, de todo jeito teria mesmo que reformar aquilo, para que possa alugá-lo. Além do mais, no nosso acordo, meu e do senhor, não haverá qualquer custo inicial, apenas será o meu chefe de gabinete, quando ganharmos a eleição, ora!

- Exatamente isso! Mãos à obra, vamos em frente, que atrás vem gente, né?

Foi assim que o nosso João contratou um engenheiro para fazer o projeto das reformas. As instalações do antigo hotel eram bastante antigas, cada quarto era grande demais para suas novas finalidades, também, todo o andar térreo continha uma grande cozinha, uma recepção e uma sala de espera. Tudo foi modificado e transformado em confortáveis quartos, bem menores, com banheiros e camas de casal. O único luxo era o bom barzinho instalado no térreo, e que atendia aos clientes em suas necessidades de comida e bebida.

Três meses depois, foi inaugurada a “nova pensão”, só que com uma característica bastante inusitada: não cobrava nenhum centavo pela estadia de uma hora. Apenas, era necessário que os “clientes” agendassem um horário por telefone e assinassem um termo de adesão à campanha eleitoral do já famoso João (P... Véia), absolutamente vitoriosa.

Com isso, ele consegue manter o estabelecimento funcionando até hoje, além de ser eleito vereador em sucessivos pleitos. Já foi consultado pelo partido para sair candidato a deputado estadual, mas não aceitou, porque prefere não se afastar de seus “negócios” particulares.