Manchete
Henrique mais uma vez chegava exausto em casa. Depois de um longo dia de trabalho, tudo o que ele queria naquele momento era se jogar na cama para acordar apenas no outro dia.
Ele põe as chaves na cômoda da sala, senta em um dos sofás e joga sua maleta de trabalho no outro.
- Ufa! Não via a hora de chegar em casa, tomar um banho e dormir. – Diz ele.
Henrique já ia se levantar para ir para o seu quarto quando percebe uma presença o observando. Era uma pessoa não muito grande nem excessivamente pequena. Para dizer a verdade, devia medir quase um metro e meio de altura.
Henrique, no entanto, não sentiu o menor medo, até por que ele já sabia exatamente de quem se tratava.
- Felipe, você já não devia estar dormindo?
- Sim, pai... Mas é que eu pensei em te esperar chegar. – Responde Felipe.
Ele era o filho único de Henrique. Como não morava com a mãe e não tinha irmãos, primos, amigos nem qualquer outra pessoa de sua idade com quem pudesse brincar, vivia esperando uma oportunidade de fazer isso com seu pai, algo que quase nunca acontecia, já que Henrique era um homem ocupado e seu trabalho absorvia quase todo o seu tempo. Mas Felipe vez por outra insistia, mesmo com a grande possibilidade de receber um “não” como resposta.
- O que você quer? – Fala Henrique passando a mão no rosto, um sinal claro de que ele não estava com muito ânimo para conversa. Mas Felipe já havia começado e a solução naquele momento era prosseguir.
- É que alguns dias atrás foi inaugurado um parque na capital, aí eu pensei se agente não poderia ir lá depois de amanhã, que é a sua folga.
- Ir a um parque na capital depois de amanhã? Bem, pode ser. Se não surgir nenhum imprevisto até lá. E se você for dormir agora para que eu possa descansar para amanhã ir trabalhar, afinal se eu quiser te levar para o parque na minha folga, é bom que eu esteja com tudo em dia, não acha? – Fala Henrique. Suou mais como um “Se eu disser que sim você me deixa em paz?”, mas para Felipe já era um começo.
- Está bem, pai. Boa noite! – Diz ele que segue relativamente contente para o seu quarto. Pelo menos tinha conseguido alguma coisa naquela noite.
Henrique por sua vez vai para o banheiro. Depois do banho, ele vai para a cama para ter a sua tão esperada noite de sono. Noite essa, que parece não ter durado mais de dez minutos. Mal Henrique se deita ele logo ouvi o alarme estridente de seu despertador. Sem opção, ele tenta se levantar. Suas pernas pareciam pesar meia tonelada, mas ele as arrasta pela cama, pondo seus pés no chão e se levantando. Henrique sabia muito bem que para acabar com o sono que ainda resta pela manhã, é preciso primeiramente ficar de pé.
Rapidamente ele escova os dentes, toma banho, se veste e organiza sua maleta, indo em seguida para a cozinha para tomar o seu café. A casa estava silenciosa como de costume naquele horário. Felipe ainda dormia. Ainda faltavam vários minutos para a empregada chegar e o acordar para ir à escola.
Depois de tomar café, Henrique segue para a garagem e sai com seu carro pela avenida rumo à redação da emissora. Ele era redator do telejornal da região, e como tal, ele tinha que chegar o mais cedo possível no local de trabalho. Afinal, nas primeiras horas do dia podem ocorrer muitas coisas que precisam ser relatadas e apresentadas ao público.
Quando chega à sala de redação, Henrique vê seu colega Alberto na mesa perto da sua.
- Bom dia!
- Bom dia. – Responde Henrique
- E então? Já planejou sua folga amanhã?
- Nem me fale. O Felipe estava ontem mesmo me perturbando para eu levar ele naquele parque aquático que inauguraram semana passada.
- E porque você não o leva? Vai ser bom você passar um tempo a mais com seu filho.
- Talvez você tenha razão, mas decidirei isso depois. – Diz Henrique olhando atentamente para a tela de seu computador. Nesse momento, passa Alisson, o apresentador do telejornal.
- Aí está um homem de sucesso. Eu abriria mão de todas as minhas folgas do ano inteiro para ser o apresentador. Esses sim são jornalistas reconhecidos.
- Mas você já não foi escalado como apresentador?
- Na verdade, fui escalado apenas como substituto. Vou apresentar o jornal apenas se o Alisson não puder. O que é extremamente difícil, ele nunca falta.
- Não se preocupe. Você vai ter sua chance algum dia desses.
- É o que eu espero. – Fala Henrique com toda a sua sinceridade naquela manhã antes de começar sua rotina de trabalho árduo.
As horas se passaram. O dia da folga de Henrique havia chegado e seu início era preenchido com o entusiasmo radiante de seu filho.
- Nossa! Pai, você vai vê como lá é legal. Em que tobogã você vai primeiro? Eu quero ir primeiro naquele azul, que fica dando voltas como numa espiral. – Fala Felipe, manuseando de forma frenética um panfleto com todas as atrações do parque. Desde que saiu, ele não parava de falar um só minuto. – E olha esse aqui! Mas eu acho que é só para adultos. Você vai nele também?
Henrique não responde de imediato. Sua atenção estava voltada para o caminhão que ele tentava ultrapassar com todo o cuidado. Henrique não gostava nem da idéia de ter seu carro, que ele se esforçou tanto para comprar, danificado por um acidente na estrada.
- Veja bem, Felipe. Antes que você comece a planejar a próxima viagem, eu gostaria de dizer que eu não posso fazer passeios como esse com freqüência. Por isso é bom não ir se acostumando.
- Eu sei, pai. Mas isso não quer dizer que eu não possa aproveitar esse ao máximo.
- Ótimo. É bom contar com a sua compreensão.
Henrique, então, passa a se concentrar novamente no tráfego daquela estrada nos limites da cidade. Felipe ao seu lado alterna o uso de suas mãos entre segurar o panfleto do parque aquático e apertar os botões de seu vídeo game portátil. E os dois ficam envolvidos num silêncio que era interrompido apenas pelo barulho dos carros que iam e vinham, até que o celular de Henrique toca. Ele o tira do bolso e olha o número de quem está ligando.
- Pai! – Diz Felipe do outro banco – Você vai atender? Não sabe que é contra a lei falar ao telefone enquanto dirige?
- Sim, desculpe. Você tem razão. Eu tenho que dar o exemplo.
Henrique pára o carro no acostamento e atende o celular.
- Alô, Alberto. O que foi?
- Henrique, você está aonde? – Pergunta Alberto do outro lado da linha.
- Eu estou indo pro parque com o Felipe. Por quê?
- É que o Alisson não pode vir hoje apresentar o jornal, ele quebrou a perna fazendo ginástica. Aí o diretor me pediu pra te ligar para saber se você o pode substituir. Não se preocupe, você pode tirar outro dia de folga.
- Apresentar o jornal?! Mas isso é... – Henrique olha para Felipe que o observa meio confuso. Ele esperou muito por essa viagem e Henrique se perguntava se tinha o direito de adiá-la ainda mais. Mas uma chance dessas não surge a toda hora e Henrique, como um bom jornalista, achava que tinha quase o dever de aproveitar ao máximo as oportunidades que lhe aparecem.
Rápido ele dar a volta e avança no sentido oposto ao que vinha.
- Algum problema?
- Mudança de plano, Felipe. Houve um imprevisto no jornal. Vou ter que voltar.
- E a nossa viagem?
- Desculpe, filho. Vai ter que ficar para outro dia.
- Isso não é justo! Você sabe o quanto foi difícil ser liberado hoje da escola. E nos sábados e domingos eu tenho aulas de judô, inglês, piano e natação. Você não é a única pessoa ocupada
- Eu sei, mas se...
- Mas se o quê? Mas e se eu faltar escola outro dia? Você mesmo disse que faltar a escola é um ato de irresponsabilidade e idiotice.
- Eu sei. Mas você vai ter que se conformar.
- É. Deixa pra lá. Já era.
- Felipe, se ir a esse parque é realmente importante pra você, eu tive uma idéia, mas não sei se você vai concordar.
Henrique dobra numa esquina próxima e depois de alguns quarteirões eles chegam à rodoviária.
- Que tal a gente ver se por aqui tem alguém que possa ir com você de ônibus?
Mesmo a contragosto, Felipe consente. Eles, então, dão algumas voltas com o carro pela rodoviária procurando alguém conhecido, até que Henrique avista um familiar. Os dois descem do carro e vão falar com ele.
- Oi, Pedro. Como está? – Diz Henrique.
- Oi, Henrique. Tudo bem. E você?
- Tudo ótimo. Está fazendo o quê aqui?
- Vim com a minha mulher pegar um ônibus para ir para a capital. Vamos ver o parque aquático.
- Eu estava levando o Felipe para lá agora mesmo.
- Nossa! Como ele ta crescido. Que bom, pode nos dar uma carona?
- Na verdade vai ser o contrário. Eu preciso que vocês o levem. É que eu preciso trabalhar.
- Está bem. Mas todos os ônibus que vão para a capital já saíram. Só sobrou aquele. – Pedro aponta para um ônibus velho que Henrique podia jurar que era apenas uma carcaça velha que haviam abandonado ali.
- Aquilo anda? – Pergunta Felipe
- Não só anda como vamos nele – Responde Pedro com entusiasmo.
- Ouça, filho – Diz Henrique agachando-se à altura de Felipe – Isso é provisório, está bem? Surgiram outras oportunidades. Divirta-se lá com o Pedro. Mais tarde eu passo lá pra te buscar.
- Está bem, pai. Eu te... Vejo mais tarde.
Despedidas feitas, Henrique agradece a Pedro e vai para o carro. Enquanto se afastava da rodoviária, ele vê a partida do ônibus pelo retrovisor. O veículo até parecia um monte de ferro velho empurrado por uma força desconhecida.
Quando chega à sala de redação, Henrique é recebido com as felicitações de Alberto.
- Como vai o nosso apresentador?
- Amedrontado.
- Relaxa, cara. Nem é a sua primeira vez.
- Eu sei, mas é como se fosse.
- Não se preocupe. Ainda tem duas horas até a transmissão ao vivo, dar para você se preparar.
- É. Ainda bem. – Diz Henrique.
Mas as horas se passaram mais rápido do que ele havia previsto, e logo todos estavam agitados no set. Alguns posicionavam as câmeras enquanto outros carregavam cabos ou papéis. O diretor testava as comunicações com os outros da equipe e Henrique ajeitava o microfone no seu novo paletó. Uma vez estando tudo no lugar, todos tomam a sua posição. Henrique senta atrás da bancada. Um homem usando algo que lembrava um colete acena de perto da câmera.
- Entraremos no ar em 4, 3, 2, 1...
Uma luz na câmera acende.
- Boa tarde. Está começando agora o seu jornal do meio dia e esses são os destaques de hoje.
Corta. São exibidas as notícias de destaque do dia.
Henrique volta a entrar no ar. Ele se vira para outra câmera, onde o texto a ser lido pelo apresentador aparece no visor.
- Prefeito de cidade do interior do estado tem seu mandato cassado após denúncias de corrupção. Ele responde processo por desvio de verba desde o início do ano.
Quando Henrique termina de falar o que estar escrito, é exibida a reportagem, sendo esse o sistema que se segue durante todo o jornal.
Henrique lia a notícia que precisava enunciar e após era exibido a reportagem correspondente, que ele mesmo podia ver pelo monitor que ficava no chão à sua frente.
- Número de turistas no litoral aumenta com a chegada do verão, alimentando o comercio local. Segundo estimativas, a economia da região chega a subir cerca de 20% nessa época do ano. – Fala Henrique dando mais uma notícia ao público telespectador. E assim segue o noticiário. Notícia após notícia, minuto após minuto, com Henrique conduzindo tudo com maestria profissional.
Agora que estava chegando ao final da edição do dia, Henrique já podia até ouvir os parabéns de seus colegas e os elogios de seus superiores, e se preparava para o grande final, quando finalmente poderia dizer “Por hoje é só. Boa tarde e até a próxima”. Uma frase simples, mas que seria como uma “cereja do bolo” para o seu êxito, complementando o seu sucesso. Mas antes era necessário um último aviso.
- E agora uma última notícia – O texto começa a aparecer no visor – Ônibus em péssimo estado de conservação que seguia pela BR 394 com destino à capital perde os freios e após bater em uma carreta, cai de um barranco de 10 metros, hoje por volta das dez horas da manhã. Segundo os bombeiros que chegaram ao local, não houve... Sobreviventes. – Henrique pára de repente, alguma coisa estava lhe parecendo ligeiramente familiar.
No monitor junto ao chão, ele pode ver as imagens do acidente que estavam sendo exibidas aos telespectadores, e o seu coração começou a ter palpitações.
Aquela cor, aquela carroceria, até mesmo as ferrugens e as rodas gastas. Henrique reconheceu tudo. Aquele ônibus que estava no final daquele barranco com chamas saindo de suas janelas, com bombeiros e curiosos ao seu redor, era o mesmo que ele tinha visto nessa manhã. O mesmo que seu filho havia embarcado para a capital.
Ninguém atrás das câmeras ou na sala de redação pareceu perceber o que estava acontecendo com Henrique. Quando a reportagem terminou, a imagem do apresentador voltou a ser exibida, mas este não disse uma só palavra. Seu rosto com uma expressão confusa era observado por dezenas de profissionais e milhares de telespectadores que esperavam dele algum comunicado, recado, saudação, despedida, uma frase que seja. Mas ele não falou nada. Ao invés disso, faz algo que surpreende a todos. Ele se levanta bruscamente com as mãos no rosto, numa atitude que beirava ao desespero e abandona o programa ao vivo, deixando o diretor do jornal e seus colegas com uma perplexidade que era comparável apenas a daqueles que estavam assistindo de casa.
Henrique passa pelas câmeras e técnicos quase esbarrando neles e nos equipamentos, continuando sua estranha corrida pela sala de redação, ignorando tudo e todos. Nem mesmo os gritos de Alberto foram capazes de chamar sua atenção.
Ele alcança os fundos do prédio, sumindo porta afora.
A partir daqui, não posso precisar o que aconteceu com o Henrique. Se ele parou quando saiu da emissora para expressar todo o seu desespero. Se ele dirigiu até o local do acidente ou se foi despedido, ou ainda se voltou para se explicar. Mas uma coisa se pode dizer de Henrique: Ele nunca mais foi a mesma pessoa.