Mas ninguém perguntou à Nancy

Camélia sempre quis que uma citação sua ficasse para a posteridade, não foi a mais feliz, mas compatível com seu nível intelectual:

“Não pode ser um bom moço, quem não dorme depois do almoço”

Deve parecer que Camélia estivesse sendo fútil e vazia, além de totalmente despreocupada em saber se havia no mundo alguém a quem não fora dado o direito de dormir após as refeições. Ela vivia no ócio, e suas sestas eram questão de honra, deixando sua citação revelar o seu perfil.

Todos os dias lá ia Camélia, após o almoço, para aquele merecido descanso, ainda que não soubesse a razão de descansar, sendo fato que nada fazia, que pudesse justificar um repouso.

A oficina do diabo, também chamada de ócio, ela dividia com Gerson, seu amantíssimo marido; recordando –“não é um bom moço.........”

A Casa Grande proporcionava todo o silêncio, sinfonicamente harmonizado pelo canto dos pássaros, que dava ao casal o ritmo que acalenta o sagrado sono dela, de seu marido e fiel escudeiro Gerson, que unidos de mãos dadas se faziam hóspedes de Morfeu.

A moenda não podia ranger, o boi não podia mugir, dificultando a vida daqueles que não dormiam na fazenda, que gerava dividendos a sustentar a sesta dos justos. Todos se movimentavam calados, como se sentissem saudades, parecendo zumbis, agitando-se em cenas mudas, literalmente produzindo em silêncio... o silêncio.

As sestas separavam as manhãs das tardes e apenas uma vez, em toda a existência daquela comunidade Camélia deixou de se recolher após o almoço, pois o prefeito viria jantar na Casa Grande, acompanhado da primeira dama e juntos traçariam o rumo de uma gestão que se iniciava, com a participação direta do Gerson, eleito para vereador com um consagrador número de votos.

A perfeição que o evento exigia, também exigia a presença de Camélia supervisionando as cunhas que faziam brilhar talheres e louças a serem utilizados no jantar. As jóias e roupas fizeram dela uma deslumbrante anfitriã, os detalhes fluíram com perfeição e a ceia foi um sucesso.

Os “excessos” cometidos por Camélia a fustigaram na manhã seguinte, uma tremenda dor de cabeça, um mau humor indescritível, tudo levando os empregados a se arrependerem de ter participado com o voto na escolha do Gerson para vereador.

Não há mal que nunca acabe, e a hora da sesta chegou, arrastando Camélia e Gerson para a alcova, para a rotina dos justos. Tomou a dócil mão do marido e lá se foram para o reduto destinado aos patrocinadores da alegria e da condição de vida daquele grupo social.

O sono se abateu quase que imediatamente sobre o leito e Camélia pôs-se a dormir sob a égide protetora das mãos do cônjuge ao seu lado. Em um momento raro de lucidez, ainda que letárgico, percebeu que não tinha entre suas mãos as mãos do marido, mas sim o bico morno da bolsa de água quente, que sempre seguia o casal, quando se encaminhava para o sono.

Esperou, num enorme sacrifício o retorno do marido, que deveria ter ido ao banheiro, Percebendo que ele não retornaria, Camélia se levantou e dirigiu-se à varanda que circundava a Casa Grande e permitia, à sua volta, uma visibilidade quase que total de toda a propriedade até o horizonte. Permitindo também que ela visse Gerson entrando sorrateiramente na casa de Nancy, a mais cobiçada e sensual menina de toda a região.

O desmaio lhe tomaria a oportunidade de continuar a vigília, e por esta razão não desmaiou, mas sentiu-se uma idiota por ter sido ela quem garantiu à Nancy acesso direto aos aposentos sagrados do casal; via uma profana invadindo um campo santo, a volúpia da menina manchando seu santuário, sim, ela permitiu que seios e coxas perfeitas invadissem seu templo.

Passou por sua cabeça assassinato, açoites e expurgo, mandando para o ostracismo toda a família de Nancy, como faria Clístenes na antiga Grécia, bem como outras dezenas de retaliações menos votadas.

Qualquer medida contra Nancy iria revelar a infidelidade, o que sujeitaria Camélia a uma vergonha perante a família e amigos: a sabedoria é quem orientava Salomão e assim ele se fez um sábio ao aplicar a justiça.

Deixou passar alguns dias e constatou que Gerson realmente procurava outros braços, enquanto ela dormia, para então procurar Guiomar, uma viúva, mãe da despudorada Nancy, a quem apresentou uma proposta magnânima: era chegado o momento da Nancy ir estudar em um centro maior, adquirir uma visão acadêmica, freqüentar meios e escolas condizentes com todo seu potencial. Camélia vestiu-se de “déspota esclarecida”, arcando com todo o custo da menina na Capital, centro das universidades.

Dona Guiomar sabia que a falta da filha por perto iria causar um vazio em seu coração de mãe, mas esta mesma mãe via em tudo aquilo a chance do crescimento intelectual e pessoal da Nancy. A leitura do mundo se faria para a menina muito maior do que aquela proporcionada pela varanda que rodeava toda a Casa Grande.

A Nancy se foi e a Camélia voltou a dormir serenamente após os almoços, sabendo protegidos seu casamento, sua reputação e livrando seu marido das sinuosas curvas da agora menina universitária.

Gerson durante os horários das sestas manteve a técnica de deixar entre as mãos de sua esposa o bico morno da bolsa de água quente, como se fosse suas mãos; e lá ia ele, impunemente encontrar-se com sua amada amante Guiomar, que agora não tinha mais a vigilância severa da filha, a filha linda que freqüentava os bancos das melhores escolas, tudo sob os auspícios de uma generosa dama chamada Camélia

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 07/04/2012
Reeditado em 07/04/2012
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