A vaca
Foi numa tarde morna de outubro que ela apareceu na porta de nossa casa em Niquelândia. Jogamos umas cascas de frutas e ela comeu com avidez. Mas não ficou só nisto. A partir daquele dia, na mesma hora, justamente quando acabávamos de voltar do campo, ela chegava. Não demorou muito para percebermos que ela havia aprendido o horário da nossa chegada em casa. Vinha em busca dos bagaços de laranja, das cascas de banana, caroços e cascas de manga que lhe atirávamos quando aparecia. Devorava tudo com voracidade e depois, satisfeita, ia embora.
E assim aquela vaca entrou em nossas vidas. Era simplesmente uma vaca como todas as vacas costumam ou deviam ser. Admito que nunca me preocupei com o jeito dela. O Melo, porém, era quem mais se preocupava. Talvez um caso de simpatia espontânea. Juntava cuidadosamente os restos das frutas e guardava para esperá-la como se fosse a visita de uma amiga importante. Se por acaso ela não aparecia, ele ficava preocupado com o que teria lhe acontecido.
Quando ela não aparecia, ele ficava ansioso. Sentindo sua falta, queixava-se o tempo todo. Uma vez, ela demorou tanto, que ele chegou a pensar que ela não voltaria mais. Quando cinco tardes depois, ela voltou viu-se no seu rosto um ar de satisfação explicita. Pegou toda a comida que juntara e atirou pela janela, aos pés da vaca. E ficou olhando até que ela saciada se retirou agradecida.
Ás vezes eu ficava pensando por onde andaria aquela vaca durante o dia, enquanto estávamos fora. Ocorreu-me que ela não tinha residência própria, vivesse perambulando pela cidade. Como ninguém permite que sua vaca saia por aí sozinha, concluí que também não tinha dono. Assim, ela passou a ser chamada de a vaca do Melo. Ele até gostou e muitas vezes a chamo de minha vaca.
Um dia, demoramos muito tempo no campo e chegamos em casa quando a noite já havia caído completamente. Depois do jantar, o jogo de buraco. O tempo passava, e o jogo se arrastava entre bocejos e esfregar de olhos até que alguém se lembrou da vaca e comentou que ela teria vindo naquela tarde e fora embora sem comer nada. Melo lamentou-se. Depois do jogo, cada um foi para o seu quarto. Por puro acaso, naquela noite não fechamos o portão do quintal. Ficava sempre fechado à noite, para permitir que pudéssemos deixar a porta do fundo da casa aberta: o banheiro era do lado de fora.
Dormíamos. De repente, em plena madrugada, fomos acordados por um grito pavoroso que ecoou por toda a casa. Vinha do quarto do Melo. Corremos para lá, preocupados com o que estaria lhe acontecendo. Ao chegar, vimos um quadro dantesco: A vaca estava quase em cima dele, cabeça esticada para frente e o lambia. Ele, assustado, se debatia aos gritos, tentando escapulir, mas o corpo da vaca o impedia de se levantar.
Espantamos a vaca. Ela fugiu ganhando a rua. Ainda atordoado e ofegante por causa do esforço e agitação que fora submetido ele se sentou na cama. Depois, mais calmo e rindo começou a falar do susto que levou ao acordar com aquele monstro em seu quarto, lambendo-o.
A vaca não voltou na tarde seguinte e nem nas outras tardes. Depois daquele dia desapareceu. Nunca mais voltou. A verdade é que ninguém soube o que aconteceu com ela. Dos cinco moradores da casa, dois achavam que ela fora levada pelo dono. Os outros, porém, tinham certeza de que ela ficara traumatizada com os gritos pavorosos do Melo e sumiu para sempre.