CASAL ADVERSÁRIO
D. Zilda é corintiana roxa; Seu Ademir, o marido, pune pelo Palmeiras. Aí, já pela combinação das cores envolvidas na torcida do casal, você pode avaliar as consequências do ‘match’, em família. E quando coincide de haver esse clássico nacional, e se for transmitido o jogo pela tevê, então o pau come de esmola e a zoeira se esvoaça pela casa toda. Tudo no bom sentido, que os dois beiram aí pela casa dos cinquenta, mostram boa pinta, têm casinha própria, fama de bons vizinhos e são ambos eles barnabés municipais. O escândalo que eles cometem, uma vez ou outra, é meramente eventual.
Ela, da área da Saúde, técnica em Enfermagem, milita em um posto suburbano, nem sei para qual das bandas da cidade. Já Seu Ademir é motorista de nomeada, anos a fio no batente, sem uma batida, sequer, sequer nunca deu uma freada sem propósito. Por tais e quais merecimentos, sempre lotado no gabinete da intendência, quero dizer, exatamente sob as ordens diretas do prefeito de plantão.
Seu Ademir faz lambança de que leva nome bonito de atleta famoso, lá do passado, um talzinho de Ademir da Guia. Mas só não sabe em que time o gajo importante atuou como jogador de futebol. O maridão de D. Zilda só bebe é da pinga pura. Gosta da branquinha, invariavelmente batizada com limão. Diz que corta qualquer mal pela raiz e acredita no que afirma piamente. Tanto que não deixa faltar limões em casa, estes até secam na geladeira.
D. Zilda, que é mais sensível à força etílica, sempre ali na dela, numa boa, fica só com o vinho. Mas toma vinho de encher-se, até a tampa. Ah, mas ao jogar o Corinthians, desde que seja contra o Palmeiras, ela passa montão de vinho tinto nos peitos. Não faz mistério que aprecia o tinto, mesmo aquele barato, dos de garrafões gaúchos.
Ainda jovem, deu de ir ao estádio com o então namorado, o Seu Ademir, isto somente quando Ceará e Fortaleza se defrontavam. Para sorte do casal de pombinhos, aqui na terra de Alencar, eles acertaram as falas e ambos, até hoje, torcem pelo “Vovô”, dito garbosa e carinhosamente pela enorme torcida de “o mais querido”. Agora, se a parada for entre Palmeiras e Corinthians, lá em Sampa, ninguém tenha dúvida: o pau come de esmola. Meio às biritas de Seu Ademir, sempre de butucas no televisor, também os copázios de tinto de D. Zilda, há xingamentos bilateralmente, às pampas. Ora se há!
Embora sem filhos, se não fosse o vício do futebol, ou, digo melhor, a rixa velada entre o casal que se tornou adversário no páreo da Fiel e do Verdão, os dois até que se entendiam no item amoroso. Nada contra no item da cama. Sem o diacho do clássico paulista em discussão, a dupla não teria rusga nenhuma. E, afinal, como não é toda semana que se dá o grande evento em questão, assim a vidinha simples de Zilda e Ademir presta-se para ser levada a termo, e com certa tolerância.
Só houve uma vez um bafafá graúdo, envolvendo uma camisa palmeirense. Após uma vitória do clube de origens itálicas, o talismã foi todo pinicado de faca de mesa por D. Zilda. Coitada da mulher, penso que deu chilique!... Teve crise nervosa, junto com o vinho e arrasou a camisa do Palestra Itália. Seu Ademir deu sopa, espalhou a peça de estimação no sofá, todo ganjento, e foi cantarolar o hino do seu time vitorioso, sob o xixizar de um banho frio.
Aí a coisa não prestou, ficou ruça a desfeita da cantarola. Para que ele foi cantarolar o hino do Verdão? A mulher ficou espiritada de raiva e, na cólera, fez um estrago na camisa oficial e cara do marido. Por conta, não levou safanões, que Seu Ademir já estava meio sóbrio. E mesmo ele repete sempre não bater em mulher nem com uma flor. Mas o cu-de-boi verbal foi um deus-nos-acuda.
A vizinha da esquerda veio pacificar o fuzuê e saiu foi de rabo entre as pernas, pois não conseguiu debelar o incêndio da altercação medonha do casal em litígio. De fato, não fosse o bem-querer entre os dois, na seara sentimental, a carinha até engraçada de D. Zilda teria saído amassada. Não saiu, sorte lá dela. Apesar do pileque, não houve polícia no meio da arruaça nem dentes da consorte malcriada espatifados.
Esse casal é adversário apenas no futebol, e só no clássico paulista. Gente de índole, refinada, eles vivem se acarinhando, trocando beijinhos e afagos, no dia a dia da vida. Não fosse o diacho da cachaça exagerada dos dois pelos times intrigados de sangue a fogo, no lar simples de D. Zilda a coisa seria, lá, certamente, um mar de rosas.
Só que o prejuízo que D. Zilda causou à camisa de Seu Ademir deixou magoas indeléveis no coração verde do esposo. E ele, hoje em dia, em dias do badalado clássico, limita o botijão de cinco litros de vinho tinto em apenas a metade. D. Zilda que se lixe, pois somente tem direito a meio garrafão e para ser feliz. A mulher toma do tinto, com tanto gosto, que só uma tina.
É que nas prévias do jogo, com o intervalo, comentários finais e outros emolumentos, se a consorte de Seu Ademir for além das contas, pondo o pé diante das mãos, ela então contrai a mania de dar em cima da camisa nova que ela mesma comprou para o estimado e distinto esposo. E, pior, seja qual for o placar do ‘match’, em qualquer estado etílico em que se encontre, D. Zilda descompõe a camisa verde, maldiz o time e xinga e fala muito mal de novo da cor verde, que ela acha uma cor maldita, já querendo passar a pobre da camisa, outra vez, no gume faca de mesa.
Fort., 22/03/2012.