Capítulo 1 - O Dia do Nascimento
 

            Vou começar escrevendo o meu diário.
            Não será bem um diário, mas um relato de pensamentos fritos e fatos frios.
            Nasci em Brasília, o que dava certo orgulho aos meus pais. A capital federal era por eles vista, naqueles tempos de ditadura amarga como jiló, como algo que se devia aceitar sem questionamento. A geração dos meus pais fora educada a ver qualquer rebelião contra a ordem como uma rebeldia vazia contra o próprio Deus, ou algum outro poder superior que não entendia direito qual fosse, e, talvez, nunca venha a entender.
            A ordem era a ordem: simples assim. Qualquer ameaça à ordem era uma ameaça a eles mesmos e deveria ser suprimida com força e rigor. Sendo rigidamente criados, viam com naturalidade o regime como se fosse de todo o sempre. Por diversas vezes, durante minha vida, ouvi meu pai sugerir que o único meio de se tornar presidente no Brasil era ingressar nas forças armadas e seguir carreira.
            Faltou-lhe a visão do futuro, como falta sempre aos homens que se voltam apenas a viver o dia-a-dia da sua época. E abençoados sejam esses homens, pois põem o mundo a girar. Via a carreira militar tão distante de mim quanto tantas outras e decidi nunca aventurar-me por ela. Não que tivesse algo contra, mas não sentia dentro de mim nenhum apelo forte e minha vida sempre se guiou pelos meus íntimos apelos.
            Sendo um diário de pensamentos e fatos, vejo-me já fugindo dos últimos vencido pelas ondas invisíveis do pensar.
            Deveria começar pelo meu nascimento que se deu no dia 08 de novembro de 1965.
            Era uma manhã de sol e cheguei à Terra lá pelas 10h30.
            Não aconteceu nenhum evento maravilhoso quando aportei. Não se ouviu trombetas angelicais, nem trovões ou mesmo qualquer manifestação excêntrica da natureza. Afirmo isso para dizer que meu nascimento foi absolutamente corriqueiro e normal dando-se no Hospital de Base.
            Conta minha mãe que o médico, de sobrenome famoso na política goiana, teria executado aquele único e exclusivo parto, o que descobri posteriormente que era apenas uma exagero de sua parte. Anos depois levei-a a uma consulta com o mesmo e o mito caiu por terra, como tantos outros. Fizera centenas de partos durante a vida e eu fora apenas mais um.
            As mães sempre enxergam com grandeza seus filhos e os eventos que os cercam. É um pecado de mãe plenamente perdoável. Conta ela que ficou muito tempo nos corredores esperando atendimento. Ou seria a extensão angustiante do tempo um reflexo do seu estado? Tinha apenas 18 anos e dava à luz ao seu primeiro rebento. Meu pai não sabia onde estava. Entre os negócios em um posto de combustível no Núcleo Bandeirante e as andanças pelo hospital, narrou pouco daquele dia, e talvez faça mais agora, mas será parte de um outro capítulo, em uma nova emenda. E pretendo emendar muito esses relatos construindo as lembranças de uma vida.
            Meus parentes vieram ver o primeiro varão daquela família e ganhei o nome do meu avô paterno, falecido no mês de outubro antes da minha chegada atacado pela Doença de Chagas.
            Um cientista social do futuro poderá tirar alguma coisa daqui e saber como viviam, nasciam e morriam as pessoas de 1965 no Brasil Central.
            Encerro aqui a primeira parte desse pequeno e insólito diário e quero que seja apenas uma lembrança de um sonho que um dia alguém sonhara...