O DEMÔNIO E A CAIXA NUMA NOITE DE TEMPESTADE

"A amizade é um amor que nunca morre."

(Mario Quintana)

Esta semana fui ao enterro de um amigo de infância.

Nivaldo, evangélico e tocador de tuba.

Cumprimento os familiares, converso um pouco e começo a ser cercado pelo seu grupo de oração.

Bíblia na mão, o pastor irá entabular algumas palavras.

Quedo-me ali quieto, respeitoso.

O morto aguarda paciente, (paciente demais, para o meu gosto), que sua alma seja encomendada ao Senhor.

Parece olhar para mim e indagar:

___ Lembra?

Fui visitar certa vez uma família na zona rural, moradores a certa distância da minha casa.

Acabei ficando para o jantar.

Depois choveu.

Uma tempestade de raios, trovões e bastante água.

Eu não havia levado guarda-chuva e nem queria pegar emprestado.

Ficamos a observar a chuva e a minguar conversa, papo de esperar trem.

Estava tarde e eu precisava voltar para casa, dormir, que vida na roça começa cedo.

Vi num canto da sala uma caixa de papelão, que havia servido para embalar uma enceradeira.

Manja o formato: retangular, com mais ou menos metro e vinte de altura e largura suficiente para caber um homem dentro, ou, mais normalmente, uma enceradeira.

Abri na parte superior da caixa um buraco longo e estreito, para dar visão por aonde eu andaria.

Despedi, vesti a caixa de papelão, juntei os braços bem encolhidos dentro dela e sai dando passinhos curtos, espantando o gado pelo pasto a caminho da estrada.

Era um paramento estranho, útil para proteger da chuva e bom para assustar incautos.

Na estrada encontrei meu rumo pelo brilho dos relâmpagos, que iluminavam um instante diminuto, para depois a visão retornar ao breu e guardar no cérebro uma imagem fotográfica tirada pela retina.

Vai manjando o desenrolar dos fatos; tem coisa que não pode mesmo dar certo.

Dizem que nada acontece por acaso.

E quis a casualidade que Nivaldo, na mesma hora das minhas dificuldades, estivesse ele também tendo problema com a chuva.

Ele estava na sua igreja, lado oposto ao meu caminho, tocando sua tuba, ensaiando hinos com o coral.

O coisa ruim, que ajuda a fazer mas não ajuda esconder, estava arquitetando para se divertir.

Esqueci de dizer que Nivaldo era tocador de tuba.

Ou não esqueci?

Pois é, tocador de tuba.

Tuba, para quem é neófito, é um instrumento musical de sopro, feito de metal brilhante.

Afinada em dó ou si bemol, serve para acrescentar uma oitava mais grave ao conjunto musical e marcar compasso.

A de Nivaldo era do modelo de uma campânula de setenta e sete centímetros de diâmetro, voltada para cima.

Campânula corresponde ao formato de um sino.

Equipada com seis pistões e válvulas rotativas.

Mais o assoprador, somava sete saliências alongadas, de metal amarelo, reluzente.

Pois não é que Nivaldo fez o que considerou melhor para não se molhar?

Enfiou os setenta e sete centímetros da campânula na cabeça e saiu para a tempestade de água e de relâmpagos.

Ah ! Não esqueçam!

Eu vinha em sentido contrário, enfiado numa caixa de enceradeira.

Numa curva, no meio do caminho, encontramo-nos.

Foi num fulgor de raios que nos vimos, a mais ou menos seis a sete metros de distância um do outro.

O metal, enfiado na sua cabeça, resplandeceu, refletindo o clarão da tempestade elétrica como fogo na cabeça da medusa.

Para mim era o demo de sete chifres.

Estancamos ao mesmo tempo.

Os passos miúdos que me impunha a caixa estreita impediu-me de fugir correndo.

Nessas horas a gente lembra de Deus e exclamei num latim de coroinha:

___ Vade retro satanás!

___ Samuel !? O que você está fazendo metido neste caixão de defunto?

___ Niva!? Mas que diacho de chifres são esses?

Aproximamo-nos.

As minhas mãos, metidas na caixa, impedia-me cumprimentá-lo.

Suas mãos segurando a tuba na cabeça impedia que me abraçasse.

Resolvemos curvar-nos um para o outro.

O demônio cumprimentando um caixão de defunto numa noite de tempestade de raios.

Foi dessa maneira que nos viu o motorista de um fusca "pé-de-boi", com faróis de sete volts, que entrou na curva e freou bruscamente.

Viramo-nos para o carro e começamos a nos afastar para o lado da estrada, para abrir caminho.

Mas o infeliz não teve fé.

Engatou raspando a marcha ré e escafedeu-se patinando e esparramando barro na noite escura.

Sabe Deus o que contou à família e aos amigos.

Minha prosa espiritual com meu amigo defunto estava boa, mas o pastor terminou a pregação.

Sem acompanhamento da tuba a congregação começou a cantar "Segura na mão de Deus".

Niva, bom sujeito e apegado aos bons conselhos, despediu-se de mim, agarrou-se a Ela e subiu ao andar de cima.

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Sajob - março / 2012