Dormindo com um Luís Caixeiro
Quem conhece o interior de nosso país já deve ter visto as velhas fazendas de estilo colonial, cuja arquitetura remonta a um tempo em que madeira de lei era a principal matéria-prima. Inúmeras janelas, portas de duas tábuas, com portais espessos, e assoalhos.
A fazenda de meus avós era assim. Uma casa enorme, com inúmeros quartos, salas e o quartinho que abrigava o oratório de minha avó, Dona Zulmira.
A tarefa de fechar aquelas inúmeras janelas, ao anoitecer, e abri-las ao romper do dia ficava a cargo dos filhos mais novos: Jaci e Ari. Incontáveis fechos eram travados e destravados todos os dias. Dona Zulmira mantinha o ritual sob fiscalização constante, pois não gostava de janelas fechadas durante o dia, e muito menos de vê-las abertas durante a noite.
Todos se reuniam após o jantar. Naquela noite toda a família estava entretida com os causos de um parente que havia chegado da recém inaugurada Brasília. Já estava escurecendo e bastou um olhar de Dona Zulmira para que os fechadores das janelas entendessem o recado. Muito curiosos em saber o final do causo de um tal de Juscelino, que o parente contava, dividiram a tarefa e correram o mais rápido que puderam fechando e travando todas as janelas. Voltaram a seus lugares, em volta da mesa, ofegantes, mas ainda a tempo de ouvir o final da interessante história. Quando o sono chegou, cada um seguiu para o seu quarto.
Quando Jaci entrou em seu quarto e viu que tinha se esquecido de fechar justamente sua janela, levou um susto, deu um empurrão, travou logo o fecho, antes que alguém mais percebesse.
Já era tarde quando todas as lamparinas foram apagadas. Jaci insone, ficava pensando no que poderia ter entrado no seu quarto por aquela janela esquecida aberta.
Revirava de um lado para o outro e não conseguia dormir. Levantou e foi procurar abrigo no canto da irmã que dormia na cama ao lado, a escuridão era tamanha que era impossível ver alguma coisa, mas conseguiu chegar no local pretendido, com a ajuda do tato e da experiência. Ia para o canto da irmã quase toda noite.
Revoltada com Jaci por tê-la acordado, a irmã acabou dando lhe uns empurrões. Quando se agasalhou e já ia pegar no sono, sentiu alguma coisa se mexendo , subindo na cama. A irmã, pensando ser Jaci , sacou-lhe um empurrão: “ Se você não quietar, vou chamar a mamãe! Eu quero dormir!” Jaci que não tinha movido sequer um músculo, nem teve tempo de pensar quando sentiu de novo, algo se mexer na calma, e a irmã esbravejar: “Já falei pra você parar, vou te chutar forte pra fora dessa cama!” Quando a irmã sentiu de novo a mexida, não hesitou e mandou um chute, e gritou chorando para acordar a casa inteira: “Pai, tem um trem espetento na minha cama, e eu acho que é o capeta, dei um chute nele e furou meu pé!”
No mesmo instante o quarto estava cheio de gente, quando conseguiram acender uma lamparina, viram as duas irmãs sentadas encolhidas na cama, com as cobertas nas cabeças. Quando puxaram a coberta, puderam ver o pé da pobre menina , todo cheio de espinho de ouriço. Ao abaixar a lamparina, encontraram o bichinho acuado debaixo da cama, pronto para jogar mais espinhos.
Era tempo de manga madura, e a molecada já tinha avistado alguns deles no quintal. O bicho aproveitou a janela aberta e entrou casa adentro.
Queriam matá-lo, mas Dona Zulmira não deixou. Abandonaram o quarto com a janela aberta, no outro dia ele não estava mais lá. “Tinha que ter espetado a Jaci, pois ela que não fechou a janela!” Dizia a irmã revoltada, quando tinha os espinhos puxados pela alicate.
Esse ouriço, também é conhecido como Luís Caixeiro emite um barulho parecidíssimo com o choro de uma criança recém-nascida, que muitos confundem com assombração. Dizem que o nome Luís Caixeiro foi herdado de um caixeiro viajante, que vendia bugigangas pelo interior do Brasil e naquele tempo, as agulhas, linhas e outras necessidades domésticas eram supridas com a presença desse vendedor ambulante.
Cresci ouvindo essa história, e confesso que nunca gostei de deixar as janelas abertas à noite, mesmo na cidade.