A CAPELA DE NOSSA SENHORA DO CARMO

A CAPELA DE NOSSA SENHORA DO CARMO

A vida nos gerais não era lá grande coisa. Novidades só quando o padre vinha de Buritis, para rezar a missa, e isto a cada dois meses. Oportunidade de reunir o povo em torno da capelinha, simples de adobe coberta com folhas de buriti. Um altar tosco e sem imagem. Uma capela. Sino não tinha, banco também. Chão batido, umas quatro janelas e nem sacristia tinha. O padre tirava a batina, coloca os paramentos e pronto. Também para que sacristia? Quando tinha batizado, usavam uma bacia de louça branca, que a mulher do seu Terta emprestava.

Geralmente nestas vindas do padre, havia batizado e até casamentos. Casamento de verdade, com noiva de branco e foguetes era coisa rara. Casavam para descarrego de consciência, pois o fato já havia sido consumado. Em geral depois da safra de pequi.

A vida girava em torno do pouco fazer. Uma roça de milho aqui. Outra de arroz solteiro acolá. Gado solto no cerrado. Barreiro para o gado lamber e assim era a vida. O que fazer? Deus assim quis e assim era obedecido. Deixar a vida correr, sem correr com a vida. Uma vez que outra havia uma novidade. Fulano matou uma suçuarana. Outra vez uma sucuri sumiu na vereda do Mata Nego, com um bezerro. O rasto tava lá. Uma baitona que dava medo só de pensar. Nas festas de São João e São Pedro, o fandango comia solto. Organizava-se uma novena preparatória para os santos e no dia das festas, era uma alegria só. Muito amendoim, paçoca, pipoca e churrasco de carne de boi. Alguma vez aparecia uma leitoa. Todos participavam. Todos comiam e todos se divertiam.

A capelinha ali. Simples e por mais simples que fosse, era o orgulho do pessoal do Goiás-Minas. O altar tosco em sucupira branca, o cestinho feito de palha de buriti, usado na coleta das minguadas contribuições, expressava a simplicidade e a interação do povo com o natural. Velas feitas da gordura do buriti. A vida enfim tinha uma ligação expressiva e profunda com o cerrado. A lobeira, pequi, barbatimão, pau-santo, a gabiroba, pequizeiro, araçá, sucupira, pau-terra, catuaba e o indaiá fazem ou até faziam parte do seu “mundo”, sem contar com a “santa” quina que curava males do “figo” e o insuperável “mil homem ou verga-teza.”

A vida na realidade se dava ao encantamento de viver o dia a dia, no convívio e porque não na caça de veado mateiro, catingueiro, veado-campeiro ,queixada ,caitetu, tatu-galinha, peba, tatu-canastra?

Com o passar dos tempos, as coisas começaram a mudar. De repente a venda de “seu” Terta começou a receber pessoas interessadas na compra de terras. Cerrado puro. Mas “home” de Deus, isto não serve pra nada. É pura areia. Terra de cultura? Pouca. Chuva só no inverno. E “despois” é seca de rachar os beiços. Mesmo assim eles vieram. Compra aqui, mais adiante, faz uma estrada, contrata pessoal para construir uns barracos de tábua, coberto com folhas de zinco e assim foram chegando. Antes não havia porteira e nem cancela. Agora porteira com cadeado, mata-burro e placa informando que era propriedade particular. Proibida a entrada. Mas como? E as caçadas, as apanha de aritucuns, lobeira, pequi e buritis? Agora não mais. Só nos geraes que não tinha cerca. Antes a liberdade, a passagem, a pousada, o retiro. Agora tudo mudado.

A vida começara a mudar. Antes o sossego, o contemplativo, a vida passando com o voar das araras livres como o gavião-pinhé. Cantando solitária como a seriema. Agora era uma movimentação só. Gente branca, loira, ruiva. Gente diferente. O falar, o vestir, até no comer era diferente. Antes farinha puba, arroz com suã, arroz com pequi, carne de sol, galinha com pequi. Ora em diante, churrasco, macarrão, galinhada, polenta, lasanha. O geraes tava mudando.

Seu Terta, homem de compromisso e de palavra. Fazia anos que morava no Goiás - Minas. Padrinho! Sua benção. Cuidado menino com a cascavel, na lua cheia. É mais venenosa. Leva alho no pescoço e no carcanhá. Assim a marvada não ataca. Foge. Agora nem cobra achatadeira tinha. Um bando de ema aqui, outro lá, como que perdidos no mundo.

No cemitério dos escravos, ali pras bandas do Sitio da Abadia, o respeito não se fez presente. Antes um quilombo avançado, que fugia do medo, na busca da liberdade, agora era uma plantação de arroz. Quando o arado cortou a terra pela primeira vez, foi só osso de caveira que saltou. Chama o padre. Porque chamar o padre? Ara tudo de uma vez que essa ossarama, serve de adubo. Arroz plantado. Colheita? Arroz chocho. Praga das almas dos escravos.

E assim era a vida nos geraes do Goiás - Minas. Uns diziam que era Formoso de Minas. Deixa para lá. Novas culturas, novos costumes. Criar galinha em cercado. Coisa nunca vista. Galinha criava solta, comia bosta de porco e milho. Dormia nos galhos de árvore e chocava em balaio. A criação de galinha em cercado era um prato cheio para os cachorro-do-mato-comum, lobo-guará e cachorro-do-mato-vinagre, que não tendo mais o que comer, se fartava com a galinha gorda e sonsa.

As festas dos santos amigos de Jesus estavam chegando. Era ainda inicio do mês de abril. As chuvas já estavam indo embora. Faltavam uns meses para o mês de junho. Capela simples e singela. De tão simples que a padroeira, sequer tinha uma estátua. Um quadrinho desbotado. Nossa Senhora do Carmo. Festa da padroeira, dia 16 de julho.

Oh! Doutor? Não quer colaborar para reforma da capela? No dia 16 de julho, vai ter um festão. Vamos comemorar 25 anos da nossa capela. Poderia dar uns bancos. Quer dar uma olhada na capela? Humilde. Banco? A capela está caindo, seu Terta. A movimentação foi grande. Tijolo de cimento. Coluna de pau de aroeira. Telhado de telha de barro. Piso de lajota. Banco de cambará. Uma loucura só. A capela estava pronta. Mas e o churrasco que o pessoal do sul, tanto fala? Três novilhos chega? E mais cinco leitoas capada?

O olhar triste de seu Terta, ainda se fazia presente. A capela agora todinha pintada de branco. Até calçada tinha, para não respingar a chuva e a lama, nas paredes. Que tristeza é esta homem de Deus? Não temos uma estátua da padroeira. Não temos dinheiro para comprar.

Dia 27 de setembro de 1975. O milagre acontece. Primeiro filho. Cianótico. Três nós de cordão umbilical, entrelaçando o pescoço. Arfava em busca do ar. O choro primeiro não se ouvia. Correria total. Oxigênio. UTI neonatal. Desespero total. No corredor um Frei. Frei Policarpo. Que foi que aconteceu doutor? Tá branco. Corre Frei, corre. Meu filho está morrendo. Porta fechada. A avó, o pai, o frei e o menino, filho primeiro.

Reza em latim uma Ave Maria: Ave, María, grátia pléna, Dóminus técum; benedícta tu in muliéribus,et benedíctus frúctus ventris túi, Jésus. Sáncta María, Máter Déi, óra pro nóbis peccatóribus nunc et in hóra mórtis nóstrae. Amen.

E emenda um Pai Nosso: Pater noster, Qui es in caelis, sanctificetur nomem tuum. Adveniat regnum tuum. Fiat voluntas tua, sicut in caelo et in terra. Panen nostrum quotidianum da nobis hodie. Et dimitte nobis debita nostra, sicut et nos dimittimus debitoribus nostri. Et ne nos inducas in tentationem: sed libera nos a malo. Amen.

Encerrou com: "En nome di patri, di fili espirit santi, amen!" Aspergindo água benta. Água benta. Batismo na UTI. O choro. Não do pai, não da avó. Do filho. Chora como bezerro desmamado. Era o choro da vida. Meu doutor. Por acaso tem alguma devoção? Tenho. Qual? Nossa Senhora do Carmo. Dias depois, imagem entronizada, na residência. Por um milagre acontecido.

Dia 16 de julho. Goiás - Minas em festa. Inauguração da capela de Nossa Senhora do Carmo. Seu Terta, ainda triste. Não tinha imagem. Só aquele quadrinho desbotado. Foguetório. Buzina a toda. Na carroceria do caminhão, em um altar improvisado, a imagem de Nossa Senhora do Carmo. Que emoção, que alegria, quanto choro. Meu Deus, o doutor trouxe a Nossa Senhora do Carmo.

O padre não acreditava. O povo de Goiás - Minas também não. Pois é. Esta é a santa que salvou o meu filho Mauricio.

Hoje, na capelinha singela de Goiás – Minas, Nossa Senhora do Carmo, abençoa aquele povo simples e humilde, que ainda gosta de arroz com pequi, manteiga de buritis e de ver a vida passar.

A sua benção Nossa Senhora do Carmo.

Obs: O Mauricio é meu filho, hoje com 31 anos. Por sinal se chama: Mauricio do Carmo.

Romão Miranda Vidal.

ROMÃO MIRANDA VIDAL
Enviado por ROMÃO MIRANDA VIDAL em 21/01/2007
Código do texto: T354036