Bolinhos da graxa

 
Era um domingo de sol. Outono ou primavera. Acho que verão não era, porque não estava muito quente. Também não era inverno, pois não fazia frio.
 
Logo após o almoço, telefonei para meu sobrinho mais velho - por pouco não mais velho que eu - e fiz o convite:
 
- Vamos visitar o tio Heitor, querem ir conosco?
 
- Vão já? Sabe onde é a casa?
 
- Vamos agora. A casa eu não sei, mas a cidade sim. Lá a gente se informa.
 
- Passem aqui.
 
Fui com minha mulher, peguei meu sobrinho e a dele. Rumamos pela estrada recém-asfaltada e cheia de curvas. Fazia tempo que não via o tio Heitor. Sabia que ele tinha-se mudado para sua cidade natal, que eu ainda não conhecia, mesmo sendo bem perto. Torcia para que alguém de lá soubesse me informar a casa. Apostei no tamanho da cidade. Pequena, todo mundo conhece todo mundo.
 
Muitas curvas e alguns morros depois, chegamos. Avistei o cemitério, logo na entrada, a igreja, a praça. Lembrei-me que um dia ele falou em uma roda de tios e primos:
 
- Quando eu morrer, vocês vão ter de viajar. Meu terreno está em Bocaiúva. É para lá que eu vou.
 
Assim, ao passar pelo cemitério, respirei com alívio por não estar indo visitá-lo ali. Mesmo que não encontrasse a casa, pelo menos naquele lugar ele não estava. E desejei que estivesse bem longe o dia para que a sua vontade de fazer ali a última morada se realizasse.
 
O tio Heitor era muito espirituoso. Brincava, contava piadas. Narrava causos. Dele, e de outras pessoas, eu já tinha ouvido uma referência curiosa ao cemitério da cidade. Dizia-se que era uma mina de chumbo, considerando-se que grande parte dos que lá estavam sepultados foram feitos defuntos a bala.
 
Aos quinze anos, ele já trabalhava no escritório do correio da cidade. Saía de madrugada, a cavalo, levando os malotes de correspondência para a regional de Colombo. Voltava com os malotes de Bocaiúva. Muitos trechos pelo mato, o que lhe rendeu um olho vazado por um espinho cruel. Passou a conviver com uma prótese de vidro.
 
Aos dezoito, veio para Curitiba, onde foi fiscal da saúde pública, inspecionando o leite que os curitibanos consumiam. Sina de madrugador. Dava expediente das cinco e meia às nove e meia todos os dias, inclusive sábados, domingos e feriados. Nem o Natal e Ano Novo eram poupados. Para completar o orçamento, aproveitava o resto do dia vendendo suprimentos para os armarinhos. Cavador esse meu tio.
 
No trabalho de fiscal, não brincava. Havia que ser sério e cauteloso. Um dia mostrou-me o revólver que carregava dentro da calça. Lidando com os leiteiros na madrugada, às vezes a barra pesava. Melhor andar prevenido. Apanhar ou correr, jamais. Exercia seu ofício na forma da lei e com bravura.
 
Às vésperas da primavera do ano em que eu nasci, ficou viúvo de uma das irmãs da minha mãe, que ainda teve tempo para me conhecer no seu leito de morte.
 
- Ele acabou de chegar e eu estou indo - ela disse comigo no colo.
 
Quatro filhos. O mais velho com apenas quatorze anos. Como um herói, meu tio criou os quatro e fez deles homens honrados, apesar da falta que a tia Laidinha fez para os cinco.
 
Em Bocaiúva do Sul, perguntei aqui e ali e sem nenhuma dificuldade achei a casa. Para ele uma grande surpresa. Parecia nem acreditar. Só interrompeu seu estado de alegria brevemente para perguntar se havia acontecido alguma coisa. Naquela época, com as comunicações ainda um tanto precárias, notícia ruim dava-se pessoalmente.
 
Pedi que sossegasse. Estava tudo bem. Só fui visitá-lo e estava contente por encontrá-lo disposto e com saúde. Perguntou se eu via os guris com frequência, referindo-se aos filhos. Respondi que raramente os encontrava.
 
Conversa ficando animada, os causos se desenrolando. Muitas risadas. De repente, ele perguntou para as jovens esposas se elas sabiam fazer bolinho da graxa. Elas tentavam adivinhar o que ele queria como resposta. Vendo que as duas ficaram meio embasbacadas, abriu o jogo.
 
- Vocês poderiam fazer uns bolinhos para tomarmos um café. Que tal?
 
Sem saber se dariam conta do recado e se conseguiriam lembrar-se de uma receita de vovós, disseram que poderiam tentar.
 
- Vou à vizinha emprestar trigo...
 
Sem saída, foram as duas para a cozinha encarar o desafio inesperado. Vestidas nos trinques, arrumadinhas, cabelinhos ajeitados. Perfumadinhas.
 

Roupa de domingo
em mocinhas na cozinha
se der certo é bingo!

 
Reuniram os ingredientes, planejaram as tarefas. Trocaram palpites - minha avó fazia assim ou assado. Revezavam-se na frigideira, fritando pequenas porções de cada vez para manter a temperatura do óleo e os bolinhos saírem sequinhos.
 

A ovos, sal, fermento,
misture farinha e graça.
No óleo fervendo,
frite até dourar.
Prontos os bolinhos da graxa:
é só se fartar!


Os bolinhos ficaram ótimos e foram acompanhados de café com leite. O dono da casa elogiou, feliz, as marinheiras de primeira viagem. Confraternizamos alegremente. As duas mais alegres ainda e aliviadas por não terem dado vexame na cozinha.
 
Ao escurecer, tomamos o rumo da volta. No carro, antes o agradável perfume. Depois, o discreto cheiro de fritura que impregnara o cabelo das moças.

No primeiro banho, o odor da graxa foi com as águas e tudo voltou ao normal, como se nada tivesse acontecido. Todavia, a lembrança do semblante de felicidade e das expressões de contentamento do meu tio Heitor, naquela tarde encantada de domingo, nunca mais me abandonou.


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N. do. A. - Meu tio Heitor Guimarães ainda viveu durante muitos anos. Quando faltava pouco para os 93, passou para o outro lado. Era o crepúsculo do verão. Partiu em um dia 16, assim como sua Adelaide, a tia Laidinha. Só que o 16 dela foi o último do inverno. Não foi possível entregar o seu corpo à terra em Bocaiúva do Sul, como ele queria. Mas isso não tem importância. Agora é livre; pode estar onde quiser.

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 07/03/2012
Reeditado em 17/01/2021
Código do texto: T3540151
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