AMIGOS PARA SEMPRE
AMIGOS PARA SEMPRE.
Os olhos orvalhados pelas lágrimas, já indicavam porque da sua tristeza. Aquele esfregar de mãos, aquele soluço entrecortado, eram indicativos que tudo estava terminado.
Durante anos conviveram juntos. Até pareciam que tinham nascidos um para o outro. Tanta era ligação. Praticamente um era à sombra do outro. Um triste. Outro triste. Um alegre. Outro mais ainda. Só não dormiam na mesma cama e nem comiam no mesmo prato. Ao simples acordar o outro acordava. Banho de rio? Era uma verdadeira loucura. Nadavam de tudo quanto era jeito. Cachorrinho era o preferido.
Vez por outra se desentendiam. Mas era coisa passageira. Nada que um abraço, de um aperto de mãos não resolvesse. Mãos? Digamos que sim...
Nas lidas do campo, um aqui e outro também aqui. Coisa de louco. Novilha desgarrada? Nem pensar. Touro bardozo? Tiravam de letra. Um que outro dava um pouco de trabalho. Não havia carregada de touro e nem rodada de cavalo. Na maior classe tropeavam a gadaria. Vaca parida era outra coisa. Ficavam espreitando, só para escutar o mugido e a olhada. Não dava outra. No meio da moita de capim colonião lá estava à cria. Mais um pouco de paciência e a cria estava com o umbigo curado e brinco na orelha. Um pouco complicado era pesar. Mas enquanto um cuidava da vaca parida, outro pesava a cria. E assim viviam o dia a dia. Uma hora era aquela poeira no estradão, tropeando a boiada, com destino à outra fazenda. A noite fria e estrelada, o fogo quase que morrendo de sono, com as brasas piscando e se apagando, era como um festival para os dois. Olhavam o céu, o correr da estrelas cadentes e dormiam. Mas não sem antes dar uma olhadela nos cavalos e rodeio do gado. Não se importavam com a chuva e nem com as travessias de rios. Tudo fazia parte da vida dos dois.
Um dia um amanheceu com dor de dente. Também tinha que acontecer. Gostava de comer doce antes de dormir e não escovava os dentes. Abre a boca. Dente praticamente podre. Tem que arrancar. Mas como mãe? Não se preocupe. Maria. Oh! Maria traz barbante aqui. Abre a boca de novo. Mãe o que senhora vai fazer? Abre a boca sô. E larga mão de ser cagão. Nó feito em torno do que restou do dente. Bem apertado. Olhos esbugalhados. Maria vem cá. Puxa o barbante até o trinco da porta. Amarra bem forte. Volta e espera. Menino? Presta atenção. Não se mexa daqui. Eu vou fechar a porta. Dá um passo mais pra frente. E de repente, a porta é fechada com uma forte batida. E o dente voa boca afora. Na ponta do barbante uma verdadeira cratera. Viu? Não doeu nada. Agora era só fazer bochecho com água e sal e tudo estaria resolvido. Ficou banguela de um dentão. O outro, a estas horas não era companheiro. Sumiu. Que tal que resolvessem o mandar abrir a boca? E assim viviam. Um dia resolveram pescar. Mas cadê vara de pesca? No bambuzal tem, e umas fininhas que dá gosto. Mas estão verdes ainda. Mas vamos dar uma olhada. E lá se foram. Busca dali, busca de novo. E o que encontraram? Um monte de folhas de bambu e por debaixo um tipo de caixa. Uma mala velha. Daquelas de madeira. Estava coberta com um tipo de lona, ou um pano grosso e por cima um montão de folhas de bambu. Um olhou para o outro. Chegaram até cheirar. Cheiro esquisito. Já tinham ouvido falar do homem que matara a mulher e picou todinha e botou na mala. Mas esta mala é pequena, não tá vendo? Um galho de árvore foi o que resolveu o assunto. As folhas foram retiradas, depois o pano grosso, já podre e então apareceu a tampa da mala. Quem abriria a dita cuja? Limparam em volta e ali descoberta ficou a mala. Tinha uma alça de metal enferrujada. Uma corda foi passada na alça e puxaram para o descoberto. Abrir ou não abrir? Vamos abrir uai! O velho canivete Corneta foi colocado em ação. Com pouca força uma lingüeta da fechadura pulou. Depois mas outra e por fim a do meio. O medo junto com a curiosidade andava junto. Juntos também os corações batiam acelerados. Um suava as bicas enquanto que o outro nem tanto. Mala aberta. Um pano ou uma toalha cobria cuidadosamente os objetos que ali se encontravam. É melhor não mexer. Um olhar confirmava o olhar do outro. Mala fechada e novamente colocada onde fora encontrada. Muitas folhas de bambu. Aquele seria o segredo maior dos dois. A pescaria ficou para outro dia. Resolveram pescar galinha. Mas esta é uma outra história. Voltaram para casa com um ar de curiosidade que até cego via. O que aconteceu que vocês dois estão com esta cara? Que cara mãe? A noite foi recheada de sonhos e insônias. Um se mexia o outro acordava. Cada um no seu leito. Amanheceu. Um copo de leite morno, um mingau de fubá e um pedaço de rapadura e se foram os dois. Passo a passo chegaram ao bambuzal. Lá estava o monte de folhas e por debaixo a mala. Abriram, tiraram o pano e ...cartas de amor, fotografias, diários (existiam 4), flores murchas pelo tempo, lencinho de linho, dois vidrinhos de perfume e um envelope amarelo onde se lia o nome de uma pessoa. O que chamava a atenção dos dois, se bem que, mal soubessem ler era a caligrafia. Muito precisa e limpa. E agora? Um leu parte dos diários, por breve tempo e ficou imaginando como tudo aquilo acontecera. O outro sentado só olhava, não sabia ler. Só lhe restava escutar.
Mãe! Olha o que nós encontramos no bambuzal. Meu Deus exclamou a mãe. O que é isto? Abre e olha. Anos após anos trabalhara para a filha do patrão. Nunca desconfiara de nada. Mas como que pudera esconder tal fato da família? Ela uma mulher letrada. Ele um peão xucro e, mas que sabia ler e escrever corretamente. Por ser peão nada lhe impedia de houvesse ternura no seu coração. Coração que sabia amar e corresponder ao amor que lhe dedicavam. Mas também sabia o seu lugar. Ela era mulher do patrão. Ele um peão. Um dia o patrão morreu. Morte súbita de ataque. Ela vendeu a fazenda, dispensou os empregados e doou uma parte da fazenda, em escritura de cartório, para a família cujo filho encontrara a mala de madeira.
As cartas falavam de um amor intenso que ardia dentro dos peitos, que queimava e deixava marcas como um ferro em brasa. Dos encontros quando o marido viajava, levando a boiada para outra fazenda. De um amor impossível, não pela diferença existente, entre ambos. Mas sim pelo medo do que poderia resultar desta paixão que se tornava cada dia mais forte. Um dia aconteceu o inesperado. O peão rodou com um cavalo pampa de marrom e ficou tetraplégico. O mundo desabou para ambos. Restou voltar para a casa dos pais e a ela as sobras de um amor impossível. Agora mais ainda. A vida ainda lhe reservaria mais alguns desgostos. Vivia em estado de tristeza, inconsolável. Uma tarde de intenso calor, o marido morreu de ataque. Ataque do coração. Não havia mais motivos para ali permanecer. Em uma mala de madeira, com alça de metal, forrada de cetim, colocou as cartas, as flores já secas, o lencinho, um livro de poesia e outros objetos que lhe remetiam ao amor impossível. Conhecia bem a fazenda. No bambuzal, famoso por ser local onde as cobras se escondiam, depositou a mala e cobriu com muitas folhas e galhos de bambu. Ninhos de jararacuçu. Ali depositou para sempre um amor não vivido.
A curiosidade fez com o diabo de tanto mexer nos olhos do filho, o deixasse cego. E não foi diferente. Olhou para o amigo, falou baixinho: E que tal que tem mais coisa lá? Não pensaram duas vezes. Entraram no bambuzal com a intenção de encontrar alguma coisa. Um para cada lado. Um gemido forte. Correu e deu cara com uma jararacuçu de uns dois metros. Já se preparava para outro bote. Calculou meio metro, quando muito uns 60 centímetros seria o alcance do bote. O companheiro e amigo se retorcia de dor. Um pedaço de pau acertou bem no meio da baitona. Depois na cabeça até esmigalhar. Com o amigo no colo, correu para casa. Mordida de cobra. Onde? No bambuzal. Não lhe falei que ali era morada de cobra? E agora? Soro, não tem. A rezadeira? Tá viajando. Vamos rezar então. Morreu no amanhecer do dia.
Os olhos orvalhados pelas lágrimas, já indicavam porque da sua tristeza.
Naquela manhã, chorando como uma criança. E de fato o era. Enterrou seu amigo e companheiro de tantos anos.
Enterrou debaixo de um pé de jatobá. Onde costumavam brincar diariamente.
Enterrou seu cachorro, que lhe compreendia e lhe era fiel. Mais que um amigo.
Chamava-se Alegria. Que agora deixava triste o coração do menino que ao jogar a última pá de terra, falou “Amigos para sempre”.
Romão Miranda Vidal.