OS CAMINHONEIROS
Edson era caminhoneiro, e transportava horti frutis de São Paulo para Belém com o seu próprio caminhão, nos anos 70, quando a BR-153 ainda nem tinha asfalto. Tinha data e hora para chegar ao destino, já que as mercadorias eram bastante perecíveis, sendo que ele dormia e comia muito mal. Quando furava um pneu, precisava tirar a diferença do horário, sob pena de recusa dos seus clientes. Em geral, percorria os quase três mil kms. de distância em 84 a 90 horas, no máximo, descansava no fim de semana em Belém, de onde saía no domingo à tarde, sempre carregado com alguma carga qualquer, que era para ajudar nas despesas com combustíveis.
Naquele tempo, as estradas eram péssimas, havia grandes atoleiros no tempo das chuvas, muitas vezes ele perdeu toda a carga "encravado" pelos caminhos, sofrendo grandes prejuizos.
Porém, estava acostumado àquela lida, pois fazia o trecho há mais de dez anos, desde que recebeu o MB-1111 quase novo da firma em que trabalhava, como direitos trabalhistas.
Era fevereiro e chovia muito na região do norte de Goiás, atual estado do Tocantins. Assim que passou a cidade de Araguaina, Edson deparou-se com uma enorme fila de veículos, quando ficou sabendo que havia caído uma ponte sobre um pequeno rio da região, e que o exército estaria providenciando uma solução para o problema. O único jeito foi ficar por ali mesmo, voltar era impossível, porque não havia como fazer manobras nas precárias condições da estrada. Todos comiam aquilo que surgisse, como as frutas que transportavam; poucos ainda tinham os alimentos básicos, como arroz e feijão, sal, linguiça defumada e carne seca. Um deles levava ovos, que eram consumidos cozidos ou fritos. Para "matar" o tempo, jogavam caxeta e truco em bancas improvisadas, bebiam cachaça ou cerveja quente, nem água potável havia mais em seus pequenos barris, aliás, até havia a uma certa distância de onde estavam parados, mas era perigoso irem buscá-la, por causa dos indios e das feras que rondavam por ali.
Os motoristas estavam inconformados pela demora do exército, corriam boatos de que faltava a liberação de verbas por parte de governo, tornando tudo aquilo um barril de pólvora.
Como sempre, nessas ocasiões, surgiu alguém mais “esquentado”, na figura de um jovem de boa aparência, e que se dizia filho de um político qualquer, influente na região. Ele também estava retido na estrada, nas mesmas condições em que os demais, pois o carro em que viajava não tinha como passar à frente dos outros. Bem que tentou retornar, com a ajuda de várias pessoas, mas não conseguiu, porque não havia espaço por onde escapar. Foi então que ele começou a agitação, insuflando aos desesperados motoristas.
- Meus amigos e companheiros! Nós devemos exigir os nossos direitos de irmos e voltarmos, já que pagamos, e muito, pelos mesmos, não é verdade? - dizia, numa reunião, quando se discutia aquele assunto.
- Sim, claro, nós temos o dever de pagar , só que, se a gente reclamar, é bem capaz que nos prendam e torturem, como vem acontecendo nos últimos tempos! Nós sabemos de várias coisas desse tipo, alguns sumiram, outros estão em cadeiras de rodas, ou tiveram as suas carteiras de motoristas suspensas! Você sabe a quem podemos reclamar, meu jovem? Talvez ao seu pai, por acaso, já que ele tem influência lá em cima, como você diz, hein? - rebateu Leo, um dos caminhoneiros.
- Pois é isso mesmo! A gente até achava que a polícia rodoviávia poderia nos ajudar, só que a maioria só sabe nos estorquir dinheiro por qualquer coisa, né? O grande problema é que nunca sabemos a quem possamos recorrer, então, o único jeito é pagar sempre! - adicionou
Luiz, irritado.
- Tudo bem, eu sei que vocês tem toda razão, mas isto há de mudar, com toda certeza! Os dias dessa cambada estão contados, nós da oposição vamos colocar essas coisas nos eixos, acreditem nisso! - replicou o rapaz, tentando manipular as atenções gerais.
- Bem, amigo, nós estamos até as "tampas" com as promessas desse tipo, viu? Só vamos acreditar, mesmo, quando houver mais justiça neste país, porque, por enquanto, ela só existe para aqueles que tem dinheiro, ou os que são do "esquema". Queremos algo prático. Por exemplo, o que podemos fazer para sairmos daqui, antes que as mercadorias se percam, você sabe? Quem vai arcar com os nossos prejuízos?- complementou Celso.
- Bem, existe a justiça, a quem vocês devem recorrer, lógico! - rebateu o jovem.
- Ah, tá! Imaginemos que a justiça será contra o "poder" e a favor do povo! - ironizou Edson, já prá lá de chateado.
Apesar de todas as tentativas no sentido de “agitar” os motoristas, o jovem não obteve qualquer êxito, e todos permaneceram ali durante três dias e quatro noites. Na manhã do quarto dia surgiu a brigada do exército que iria resolver a situação, porém, houve muita dificuldade para que seus veículos conseguissem chegar ao local da ponte caída.
Reconstruí-la levaria muito tempo, então, considerando-se que o riacho era fundo e estreito, optaram por colocar alguns troncos de árvores de grande porte, tipo uma pinguela gigante, apoiada sobre os pilares existentes. Assim, possibilitando a passagem de um veículo de cada vez, alternadamente, em ambos os sentidos, a operação demorou mais uma noite e um dia, com extremos cuidados.
Logo adiante uns trinta Kms. havia um posto de combustíveis com restaurante, mas acabou faltando condições de atendimento aos esfomeados viajantes, daí surgindo muitas discussões e até brigas. Foi preciso que o gerente improvisasse um esquema de senhas para se adentrar ao estabelecimento, mesmo para os que quisessem apenas beber ou comer qualquer coisa.
O rapaz da estrada, que se dizia filho de um político influente, já estava sentado a uma mesa com outras pessoas, quando ali chegaram vários militares, sendo que um deles, com cara de poucos amigos, exigiu que todos saíssem justamente daquela, que ainda não tinha sido servida. A maioria acatou a “ordem”, pois sabia que ali a “coisa” funcionava assim, mas o jovem resolveu protestar em altos brados.
- Que merda, hein! Parece que aqui funciona a lei da selva, e que isto nem faz parte do nosso Brasil! Bem, não é a toa que o Maranhão sempre está nesta porcaria toda, já que aqui prevalece a força bruta dos mais fortes contra os mais fracos! Aliás, o nosso país, infelizmente, começa no sul e termina no sudeste! – gritava ele, indignado.
- Cala essa boca de latrina, rapaz! Ou prefere que o façamos calar, hein? – berrou um “graduado”, com o dedo em riste.
- Podem até me matar, se quiserem, mas ninguém vai me dar ordens!
- Ah, então agora eu quero ver se você é macho mesmo! Cabo, retire este elemento da minha frente, leve-o ali para o balcão, dê-lhe um caderno e uma caneta, e cuide para que ela escreva direitinho, até a última linha, a seguinte frase: “Estou convencido de que o Maranhão, todo o norte e nordeste também fazem parte do Brasil”.
- Tudo bem, comandante! Vou buscar o material lá na viatura. Me aguarde, menino bonito! .... rsrsrsrs
O jeito foi que o jovem baixasse a crista, e começasse a escrever logo, porque o cabo não gostou de sair da mesa e parecia furioso, com muita vontade de ir à forra contra ele. Pegou um banquinho, deixando o outro em pé, e exigindo que cumprisse o castigo o quanto antes. De vez em quando dava uma olhada nas páginas, e, alegando não estar satisfeito com a letra, arrancava todas, amassava e jogava-as no lixo, fazendo com que iniciasse tudo novamente. Aquilo durou praticamente a noite toda, os militares se revezavam na vigilância, e não era permitido que o sujeito descansasse em nenhum momento, até que o rapaz sofreu uma “pane” e desabou, sendo deixado ali pela patrulha, estendido no chão.
Apesar de não terem nenhuma simpatia pelo “gabola”, os motoristas não gostaram daquela atitude dos “mandantes”, que comemoravam entre risadas e muitos copos de cerveja, aquilo que praticavam contra o “civil”. A classe não costuma ser muito unida, mas se juntaram vários caminhoneiros visando dar uma lição nos militares, quando acabaram esvaziando e cortando os pneus de todos os veículos oficiais.
Imaginem, se alguém descobriu algum responsável pela “brincadeirinha”. Também não ficou ninguém no local, lógico. Depois, todos ficaram sabendo que os “homens” ficaram muito bravos, e isto gerou muitos comentários divertidos, no trecho.