A igrejinha perdida lá no alto da serra, às margens do antigo estradão boiadeiro, fica abandonada o ano inteirinho servindo de abrigo para andorinhas, corujas e morcegos. Mas, quando chega finzinho de maio, comecinho de junho, é aquele movimentão. Vem gente de tudo que é fazenda da região. A capoeirinha de mato, logo acima da igreja, fica cheia de cavalos amarrados e, da escada da entrada principal, pode-se contar dezenas de carros na estradinha de terra batida que serpenteia serra a baixo no rumo da cidade.
O canudo de poeira não baixa nunca. Às vezes pode diminuir um pouco, mas logo volta a cobrir a parca vegetação composta de árvores torcidas e de folhas ressequidas pela seca ou pelo vento frio característico desses meses nos sertões das gerais. Contudo as intempéries não afugentam os fieis. Ao contrário, aumentam a afluência deles que vem em penitência pedir a clemência Divina.
Todo ano as madrinhas, escolhidas no ano anterior, gastam enormes quantidades de papel crepom em custosos arranjos que enfeitam os andores e todas as dependências da igreja indo do pátio ao altar em extensos cordões de bandeirinhas multicoloridas.
Pela manhã, bem cedo, tem missa e após o almoço a novena seguida da procissão. Só depois de cumpridos ao santos ofícios é que vem as folganças, com leilão – ponto alto da festa – e as inúmeras barraquinhas.
Na parte baixa do pátio fica o curral de tábuas onde é comum contar mais de uma dezena de bezerras curraleiras, doados pelos fazendeiros mais abastados e de coração mole, escolhidos a dedo pelo velhaco, mas querido, padre Zezinho.
Um pouco mais acima, do outro lado, fica o chiqueiro com alguns leitões. Presente de quem não pode se dar ao luxo de oferece um novilho, mas que também não querem fazer feio como os que só oferecem uma galinha. Aliás, por falar nelas, o galinheiro fica um pouco mais acima, entre o chiqueiro e o coreto do leilão.
Durante a reza, o pároco puxa os hinos e sua voz grave destaca-se do coro de vozes femininas, enquanto os homens apenas ensaiam um ligeiro movimento de lábios sem, contudo, soltar a voz.
Terminado o terço todos se dirigem à frente da igreja onde, do alto da escada, oradores pregam aos fieis enquanto as madrinhas preparam a procissão.
A saída do cortejo é precedida de foguetório, o que provoca inquietação nos cavalos da capoeirinha e espanta a cachorrada que, impreterivelmente acompanham os donos, de volta para casa. O préstito deixa o pátio e se envereda por alamedas naturais entre a escassa vegetação, formadas pelo pisotear do gado magro, que assiste impassível à passagem dos fiéis.
As mulheres seguem agrupadas logo atrás do andor principal. Enquanto caminham vão rezando um novo terço, normalmente tirado por uma festeira acompanhada das demais. Os homens vão à rabeira, calados ou, às vezes, comentando em voz baixa os resultados da última colheita ou, ainda, aproveitando para negociar uma partida de terneiros.
O sol ardente ilumina a bucólica cena: a fila dupla, ora caminha, ora para. Aqui e ali, se desvia de um estratégico “pudim de vaca”; abre-se uma tranqueira de arame e ganha outro caminho. No intervalo entre os mistérios do terço, as mulheres cantam tocantes hinos, saudados pelo pipocar do foguetório. O ranger das botinas novas confunde-se com ruído dos seixos que castigam os pés descalços dos pagadores de promessa. Depois de percorrerem tortuosos caminhos e sucessivas curvas, completam um semicírculo e estão de volta ao ponto de partida.
Após a chegada da procissão, novo foguetório anuncia a premiação das bonecas vivas e a revelação dos festeiros eleitos para organizar a festa no ano seguinte. As bonecas vivas desfilam em mimosos trajes feitos especialmente para a ocasião. O concurso não premia o melhor traje, nem a criança mais bonita. Ao final, ganha a que conseguiu maior numerário vendendo votos e, conseqüentemente, maior contribuição para o caixa da paróquia.
Ainda soam aplausos quando o leiloeiro inicia o pregão, juntando às palmas as batidas de seu martelo. Ao ouvirem o som das batidas os homens acercam-se do coreto enquanto a criançada vai à busca das barraquinhas e as mulheres reúnem-se à sombra do galpão para um dedo de prosa.
No burburinho da festa o tempo passa depressa. O Sol declina no horizonte e o leiloeiro já meio rouco, instiga as contendas. É comum o “fazendeirão” arrematar a própria bezerra que doou, pelo simples prazer de quebrar o topete de algum visitante da cidade.
O dia ainda esta claro, mas as prendas do leilão já acabaram. Também no barzinho improvisado já não há mais o que beber. Quem agora, do alto da escada, mira a estradinha vê de novo o canudo de pó, só que com os carros viajando em sentido contrário.
De repente alguém grita: - Briga! Estão brigando! - Todos correm para ver o que se passa. Geralmente algum “pé-de-cana” andou arrastando asas para mulher comprometida, o parceiro percebeu e estava aplicando-lhe um corretivo. A turma do “deixa - disso” entra em ação, mas não antes de o “bebum” tomar uns tapas, para aprender a se comportar.
O fim da briga é, também, o fim da festa. As primeiras sombras da noite expulsam os últimos retardatários. Logo a juriti, que passou o dia fora do ninho, pousa na copada de uma árvore próxima e põe-se a cantar sua triste e melodiosa canção.
Um cachorro magricela, qual alma penada, revira a borralha do que foi a churrasqueira, em busca de um esquecido pedaço de carne. O negrume envolve tudo com seu manto de escuridão. A coruja pia, anunciando que reassumiu seu posto e a igrejinha dorme, de novo, seu longo e solitário sono só perturbado pelo ruído de um ou outro carro que passa sem parar, ou pelo mugir do gado das esparsas boiadas que ainda transitam no estradão: Festa agora, só no ano que vem.