Comer Carne na Sexta-Santa
Não se deve brincar com artigos de fé, foi o que aprendi quando minhas calças ainda eram curtas demais. E tendo a fé por alvo, debatia com colegas de serviço sobre os desusos que a modernidade tem promovido no quesito de observância dos dogmas religiosos, sendo destacado o ponto que incluía a ingestão de carne vermelha na Sexta-Feira Santa, por parte do catolicismo fervoroso. Sou daqueles que não acredita que seja importante para o Messias na cruz, afinal, libertou-nos de tantas coisas que não vejo por que nos aprisionaria a uma questão que nem existia. Entretanto, fala mais alto a força da tradição, que se vê bem ainda observar.
Note-se que o povo, no andar de suas crenças, costuma criar histórias e atribuir verdades e coloridos visando a reforças e solidificar os dogmas das religiões que seguem. Nasce daí uma mística que perdurará por anos, transformando o que era conselho em lei e o que era lei em sacramento. No auge da conversação descontraída, interveio um homem simples do interior com um causo típico da região. Aproximadamente, disse nas seguintes palavras, com seu jeito manso:
¨Nós somos ignorantes, mas dentro da nossa ignorância, tem gente ainda mais ignorante. Era um fazendeiro rico aqui da região que teimou com a mulher de matar um boi na Sexta-Feira Santa, ao final do dia, para comer no dia seguinte.
Não adiantou as lágrimas da mulher que chorava de amargura pela teimosia do homem, ainda mais ignorante que a gente:
- Vou matar hoje e comeremos em um churrasco amanhã.
- Por tudo que é santo, homem. Por Nossa Senhora, não faça isso, não.
Mandou o filho, único, rapaz de 18 anos bem formado, pegar a espingarda de cano duplo e executar o tiro de misericórdia. Enquanto o menino, animado, se dirigia ao curral para dar cabo do mando do pai, a mãe derrubava-se em lágrimas de dor.
Pouco depois, ouviram o disparo que soou como mil trovões interrompendo o silêncio da noite sagrada.
- Deus do céu. – Dizia a mulher. – Eu que nunca poderia ter ouvido esse barulho aqui em casa na Sexta-Santa. Nunca que isso poderia ter acontecido em nossa casa.
O fazendeiro saiu para ver o serviço do filho e voltou logo depois, coberto de sangue, chorando mais que a mulher:
- O tiro deu errado. Foi nosso filho quem morreu...
Eu não sei, moço, eu não vi o corpo, mas dizem que fez um buraco enorme na parte de trás da cabeça. O homem amuou-se, não falou mais nada e ele e a mulher mudaram para longe, após venderem a fazenda por um preço menor que o justo.
Juro que aconteceu na Sexta-Santa, mas quem sou eu? Sou apenas um ignorante, mas sei que não devo me meter com essas coisas de Deus....¨
Esse texto foi publicado no Diário da Manhã, Goiãnia. Confira:
http://www.dmdigital.com.br/novo/?ref=dmsite#!/view?e=20120303&p=22