O ÍNGUA

Da série: Causos de Mostradanus

Apesar de ter estudado o segundo grau (naquele tempo, curso colegial) com bolsa de estudo da Prefeitura, eu tinha lá meus bons momentos em salas de aulas quando me esquecia que era muito pobre, ou muito mais que os outros colegas e com um pouco de sorte pude contar com a amizade de alguns.

Se não fosse apenas pela sinceridade, poderia ser como de fato foi, por interesses comerciais, quando pasmem, cheguei a dar cola até de prova de desenho na segunda serie B do Colégio Dom Helvécio em Ponte Nova, MG, quando o Padre, coitado, distribuía a prova e dormia na sala.

Em determinada aula de história do Brasil, fui aprender que a America (inteira) foi descoberta por Colombo em 1492 e que 8 anos após, chega o idiota do Pedro Álvares Cabral e descobre o Brasil. Embora descendente de Portugueses em terceira geração, com dois avôs paternos nascidos lá, protestei contra tamanha insensatez e disse em alto e bom som na sala que aquilo não fazia sentido, pois o Brasil faz parte da America e portanto não poderia ser descoberto duas vezes.

Considerando que não havia uma maneira eficiente de contra-argumentar (desculpem adoro os hífens e jamais vou me livrar deles) o padre alemão apelou e me chamou de Íngua e alegou que não poderia ensinar o que não estava nos livros oficiais. Fiquei com esse apelido na sala de aula, mas não pegou.

Mas não ficou por ai, mais tarde ele cobrou de mim a portabilidade de um livro de geografia que meu pai não teria tido dinheiro para comprar e disse que pobre deveria estar trabalhando para ajudar a família e não perdendo tempo em escola. Aliás, eu ouvi muito isso de parentes “ricos” naquele tempo e chegava em casa contava pro meu pai e ele sorria dizendo que um dia eu entenderia muito melhor tudo que estava acontecendo.

Depois de ouvir aquele absurdo do professor (que era também um padre) eu e o Zuim (um colega meu de classe com um olho verde e outro azul, que estudava também com bolsa) não pensamos duas vezes, olhamos um pro outro indignados e sem palavras, apenas lendo nos olhos entendemos que era o momento de levantarmos a carteira e jogar sobre aquele maldito padre metido a besta. E fizemos isto, assustando os nossos 38 colegas presentes.

Fomos pra diretoria com a recomendação de expulsão que somente não ocorreu após algumas negociações, a saber: O pai do Bozó (O zuim) era o açougueiro que fornecia a carne para o colégio inteiro e havia um contrato e uma tradição e o meu pai era simplesmente um subversivo, fichado no Dops, mas que emprestava todas as revistas da Tchekoeslováquia, Polônia e Rússia, para o Padre Diretor, o Padre Prefeito e o Padre Vice-Prefeito.

Situação acalmada, tudo resolvido, no final do ano, a bolsa minha e do Zuim na Prefeitura não foi renovada e nós não tivemos obviamente dinheiro para matricular no ano seguinte. O aprendizado que ficou foi aquele de sempre:

Mostre suas garras apenas quando tiver certeza de que não precisará recolhe-las, ou se optar por salvar a sua dignidade, não pense nos prejuízos e conseqüências.

Luiz Bento (Mostradanus)
Enviado por Luiz Bento (Mostradanus) em 23/02/2012
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