Ascensão de um Ditador
Envoltos em chamas, os livros tremem, suas folhas sendo mordidas pelas línguas de fogo, que, vorazes, os devoram implacavelmente até que deles não fica mais nada. Ao redor da fogueira há muitas figuras, pessoas que contemplam, em silêncio, o desaparecimento do conhecimento que alguma vez tiveram. Alguns sorriem, satisfeitos com a destruição, enquanto outros tremem, como se em lugar de sentir o calor das chamas estivessem num lugar gelado, e olham de relance os seus tesouros virarem cinzas. A tirania de um certo fidalgo, que tinha chegado ao lugar pouco tempo atrás, finalmente tinha chegado ao seu auge.
Tudo começou certa tarde fria de julho, enquanto todos se encontravam nas suas casas cochilando. A cidade era bastante tranquila, com seus costumes inalterados desde a fundação. Parecia quase um decreto universal, a cochilada dos domingos. Esse dia, enquanto o vento passeava nas ruas e praças desertas, levantando redemoinhos de poeira e lixo, um homem entrou no seu carro prateado, procurou o hotel e se registrou. Esse homem era Luciano Ferreira, dono de terras do outro lado da serra. Durante muito tempo tinha ouvido falar de Olário, a cidadezinha perdida na serra, mas nunca tinha se interessado nela, até que soube que essa terra era muito fértil. Ai ele quis saber mais sobre o lugar, e, depois de muito se informar e planejar, pegou seu carro e começou sua missão.
De inicio, ele ficou hospedado no hotel como um simples turista querendo aproveitar as belezas do lugar. Pouco a pouco, graças ao seu dinheiro, seus bons modos e sua oratória, que lhe ganhava a simpatia de homens e mulheres, seu Luciano, como era conhecido, já tinha feito amizade e contatos com a maior parte dos cidadãos, na sua maioria pessoas que não tinham essa desconfiança intrínseca que geralmente o homem de hoje em dia tem. Seu Luciano era bom de papo, ajudava aqui e ali, queria arranjar um emprego, gostava tanto da cidade! A filha de mais de um se apaixonou pelo fidalgo, uma ou outra conseguiram ficar uns tempos com ele, mas parecia que ele não queria se comprometer no momento. E ele se fazia cada vez mais uma figura pública.
Um dia, ele disse ao chefe de polícia que queria ajudá-lo a cuidar da cidade, já que no lugar só tinha três policiais para atender todos os problemas. Ele, com seu conhecimento de homem que veio de alhures, poderia ajudar com novos métodos, e melhorar a capacidade dos policiais de resolver os problemas, e ainda poderia ajudar a recrutar novos interessados. O chefe de polícia, porém, não quis saber. Quem mandava ali era o prefeito, ele não podia mudar a ordem estabelecida. além do mais, seus subalternos sempre deram conta do recado, não era pela chegada do seu Luciano que isso ia mudar. A isto, o forasteiro abriu um sorriso silencioso e saiu da delegacia.
Meses mais tarde, o prefeito ordenou ao chefe da polícia, o capitão César, que admitisse a ajuda do seu Luciano na capacitação dos oficiais submetidos ao seu comando. Também tinha que submeter todas as informações da delegacia a dito homem, que faria uma catalogação computadorizada de todas as informações. De uma hora para outra o capitão viu sua delegacia invadida por homens sob as ordens do fidalgo, os quais mexeram nos seus arquivos, mudaram o seu escritório, e encheram o lugar de aparelhos complexos, enquanto falavam entre si usando códigos para ele desconhecidos. Ele quis protestar, mas o prefeito foi inflexível. Em breve, os seus homens passaram a obedecer as ordens do seu Luciano, enquanto ele ficava relegado ao trabalho de escritório, já que tinha que aprender a usar os tais computadores de ponta.
Olário, no entretanto, continuava com sua rotina. As crianças iam à escola, as mães arrumavam seu lar, homens e mulheres iam ao trabalho nas pequenas empresas da cidade, no comércio ou na roça. Tudo parecia ir como de costume. Só que, do nada, começaram a surgir rumores na cidade. De repente se soube que a freira Marisa, que cuidava do orfanotrófio, namorava o açougueiro Lucas, enquanto sua mulher cuidava do açougue e do seu lar. Lucas negou rotundamente, e a freira foi mandada a outro lugar. As fofocas, um mal de que a cidadezinha se tinha visto livre até o momento, agora enchiam o tempo de todos. Lucas era um traíra, a professora da escola falava mal dos pais dos alunos com todos os que encontrava no bar da esquina, ela bebia! A recém casada Florzinha estava grávida de um moço desconhecido, o prefeito estava roubando, os policiais dormiam nos seus postos, o gari da praça na verdade era cheio da grana. Apesar de alguns rumores serem absurdos, e mesmo quando os presumidos implicados negavam a veracidade das informações, ninguém desconfiava da origem espúria destas. Pouco a pouco os vizinhos, antes cada um preocupado com seu vizinho, sempre alegres e sociais uns com os outros, ficaram desconfiados, olhando as pessoas passarem pelo canto do olho, preocupados com o que os outros falariam deles. Se antes o cochilo de domingo era quase que obrigatório, agora era disfarce para se fechar em casa e evitar os olhares indiscretos, enquanto se fofocava sobre o mundo lá fora. E essa desconfiança aumentou a tal ponto, que muitas mães não quiseram levar seus filhos à escola, por medo do que a pervertida professora pudesse fazer, e alguns começaram a questionar a efetividade das instituições públicas. Afinal, como se podia viver em paz com um prefeito corrupto e policiais dorminhocos?
O engraçado de tudo isso era que, entre todas as fofocas, não havia nenhuma que tivesse como protagonista seu Luciano. Ele ainda era o cara gentil, bom de papo e ajudador que chegara um dia e se estabelecera entre eles. Sabendo disso, o prefeito, o doutor André, o procurou. -Seu Luciano - ele disse - o senhor sabe que eu sou inocente dessas coisas ruins que estão falando de mim. O senhor está bem perto de mim faz tempo, praticamente desde que chegou, e, bom, acho que sabe como estão as coisas por aqui. Eu sei que você tem boa oratória, e sabe muito, já que veio da cidade grande. Poderia me ajudar a reconquistar o carinho e a confiança dos olarianos?
-Bom, dr. André. Eu posso ajudá-lo sim, mas para isso tem que me dar permissão de fazer o que eu quiser. Sabe, para poder falar livremente às pessoas sobre o senhor, e mostrar a eles com fatos sobre como a cidade é boa com você no cargo. Pode ser?
O prefeito aceitou a ajuda. No início, seu Luciano teve permissão de discursar. Ele falou a favor do prefeito, fez campanha para a eliminação das fofocas, disse que isso era um mal terrível, que os vizinhos deveriam se apoiar uns nos outros, ter confiança neles mesmos e na honestidade do resto, já que essa divisão só levaria a cidade à destruição. O povo começou a pensar que, se as fofocas eram assim tão más, deviam encontrar quem as tinha começado.
Depois, Luciano começou a falar para os policiais, dizendo que o dever deles era manter a ordem, e que não podiam aceitar que se falasse mal deles. Dessa forma, a polícia, aos poucos, se afastou do povo, sentindo-se num patamar superior, onde não poderiam ser manchados pelos falatórios das massas. Eles eram os que tinham o controle. Aos poucos, a cidade, em lugar de se unir sob as palavras do orador, se dividiu ainda mais, cada um desconfiando que o outro tinha iniciado as fofocas, e com medo do que a polícia podia fazer com eles se achasse que eram eles que falaram mal dos policiais.
Um dia, o capitão César amanheceu morto na esquina da rua da delegacia. Ninguém soube o que tinha acontecido, ninguém ouviu nada. Os policiais, revoltados, ameaçaram o prefeito de revolta se não achasse o culpado. Seu Luciano se ofereceu para substituir o capitão, visto que tinha a confiança dos seus homens. O prefeito aceitou. Todos se puseram ao trabalho de descobrir o autor do crime, sem resultado. Luciano animava os homens, falava que iriam achar o criminoso, mas enquanto isso tinham que organizar a cidade, que estava muito bagunçada com o acontecimento. Depois de debater com o prefeito, este lhe deu poder total sobre as tropas de polícia, que desde a chegada de Luciano tinham aumentado de três oficiais para mais de vinte. Ele declarou que tinham que decretar um toque de recolher, para que não acontecessem mais mortes na cidade. Durante a noite, quem saísse seria considerado suspeito e levado à cadeia. Os policiais gostaram dessas novas atribuições. Devagar, eles iam conquistando mais poder, controlando mais e mais as vidas dos cidadãos. O prefeito, que confiava em Luciano, não enxergava o que estava acontecendo, até que foi tarde demais. Quando ele acordou para a realidade, seu cargo era meramente nominal. Ele percebeu que o controle de tudo estava nas mãos do amável seu Luciano. Mas então, já não havia o que fazer.
Os cidadãos de Olário não entendiam bem o que tinha acontecido na sua terra. Onde antes todo era tranquilo, agora só havia medo, e suspeitas. Como não tinham achado o assassino do capitão, a suspeita recaía em todos, e a polícia estava cada vez mais abusada. Agora o toque de recolher não era só à noite. Os cochilos de domingo viraram obrigação, nessas horas ninguém podia sair na rua. Seu Luciano, com seus discursos, convencia a população de que tudo se fazia pelo próprio bem dela, mas as coisas estavam tomando um rumo sinistro. Um belo dia, seu Luciano disse que, já que as mães suspeitosas não levavam seus filhos à escola por culpa da professora devassa, era melhor não desperdiçar o orçamento da cidade na manutenção de uma escola vazia. Fechou a escola, e também a biblioteca. Quem quisesse estudar, que o fizesse em casa. Porém, com o tempo, ele começou a dizer que a razão do início das fofocas tinha sido uma mente maliciosa, alimentada com histórias espúrias lidas em livros obscuros. Ele disse que as pessoas não podiam perder tempo lendo e alimentando suas mentes de fantasias bobas, que enchiam suas mentes de suspeitas e acrescentavam sua imaginação, que depois virava campo fértil para a invenção de maledicências. E assim, se chegou à fogueira dos livros. O prefeito fantoche assinou, contra sua vontade, um decreto para a captura de todos os livros que existiam na cidade. A praça se encheu de pessoas. Quem se negava a entregar seus livros era levado ao cárcere. Todos foram obrigados a assistir ao espetáculo. Nessa noite, misteriosamente, vários dos moradores de Olário sumiram sem deixar rastro. Suas posses foram tomadas pelo seu Luciano. Ele começou a dizer a todos que sua missão, quando fora para essa cidade, era fazer dela um lugar melhor, onde todos os olarianos fossem prósperos, e que para isso ele tinha feito o que tinha feito. Se eles deixassem seus livros e trabalhassem, iam ganhar mais dinheiro. E se eles trabalhassem diretamente para ele, iam ter segurança e estabilidade pelo resto das suas vidas. Disse também que para que tudo funcionasse direito, tinham que abolir o cargo do prefeito. Afinal, as coisas estavam bem melhor nas suas mãos. E fechar as pequenas lojas, já que era melhor se trabalhassem para ele. Os pequenos proprietários de terras tiveram que dar uma taxa da sua produção ao novo líder. Assim, todos os aspectos da cidade finalmente foram submetidos ao controle de seu Luciano.
O povo de Olário, que fazia tão pouco tempo era uma comunidade tranquila, agora entendia sua sorte. Sem saber como, tinham caído nas mãos de um prepotente ditador.