Os jogadores de truco e os dois hóspedes
Os irmãos Alfredo e Roberto, apesar de inseparáveis, eram muito diferentes um do outro. Alfredo, sempre metido a sabichão, era de uma má sorte sem igual. Roberto, o caçula, sempre levava a melhor em relação ao irmão. Moravam com a mãe em um sítio, nas proximidades da capital, e toda semana levavam os produtos que colhiam para uma feira na cidade. Enchiam o carro de frutas, verduras e ovos fresquinhos e voltavam sempre com a carteira cheia de dinheiro, felizes da vida.
Naquele dia, depois da feira, foram abordados por um grupo de assaltantes, que renderam os dois irmãos. Deram uma coronhanda na cabeça de Alfredo, um galo se levantou na hora. Já partiam para pegar Roberto, quando viram uma viatura se aproximando. Um dos meliantes disse:
-Vam’bora! Vam´bora! Já tá bom! Já tá bom! Olha os homi...
Já haviam limpado os bolsos, as carteiras, jogaram os dois na calçada e fugiram no carro. A viatura que fazia ronda no local passou direto, e os dois irmãos jogados na calçada pareciam invisíveis. Sem nenhum telefone por perto, os dois se viram longe de casa e sem dinheiro para o ônibus.
-Alfredo, o que a gente faz agora?
-Vem perguntar pra mim? Você bem que poderia ter deixado uns trocados dentro da cueca, duvido que o ladrão achasse.
-Na cueca eu não deixei, mas tenho uns cinco contos dentro da meia. Dá pra gente comer alguma coisa!
Alfredo riu do irmão, e os dois se sentaram no meio fio, tentando achar uma solução.
Vendo que o irmão não tomava iniciativa, Roberto se levantou e disse:
-Alfredo, eu to com sede, e daqui a pouco minha barriga vai roncá. E saber que nesta horinha memo, a mãe tá fazendo aquela janta cheirozinha, esperando a gente! Hoje é dia de sopa de galinha! O que cê acha da gente ir de a pé? Se nóis ficá parado parecendo besta aqui, nunca vamo chegá!
Alfredo achou a idéia do irmão uma tolice, mas como não conseguia pensar em nada melhor, acatou, e os dois seguiram o rumo de casa.
Foi só sair da cidade e começar a rodovia que Roberto iniciou uma contagem regressiva:
-Farta 42 quilometro.
Um quilometro depois:
-Agora só farta 41 quilometro.
E continuava:
-Pela minhas conta, agora deve farta uns 38. A praca daqui sumiu.
Alfredo que já não aguentava mais Roberto medindo a distância, gritou feliz quando avistou uma placa que anunciava a proximidade de um posto de gasolina.
Apertaram o passo e chegaram no posto. Correram no orelhão, mas se lembraram que não tinham telefone de nenhum parente, a cadernetinha com os números, ficava no carro. Quase mortos de sede, Afredo sugeriu que comprassem água, mas Roberto só apontou para a torneira, o dinheiro era para ser gasto no jantar.
Um homem que passava por ali viu os dois e logo se aproximou.
Puxou assunto e Roberto, que falava pelos cotovelos, contou todo o acontecido.
-Que sorte! Amanhã cedo eu vou fazer um serviço pertinho do sítio d’ocêis. Se quiserem, podem ir dormir lá em casa, tenho um quartinho sobrando, minha muié ta viajando, eu to lá sozinho. Só chamei uns amigo pra jogar um truco, mas nóis num vai incomodá.
Desconfiado, Alfredo ia recusar, mas antes que pudesse fazê-lo, Roberto aceitou o convite sem hesitar.
Compraram algo para forrar o estômago e os dois seguiram o tal do homem em direção à sua casa, ali perto mesmo. Quando chegaram no quartinho que os hospedaria até o dia seguinte, o anfitrião abriu a porta e disse:
-Como eu disse, as acomodações são bem simples, mas fiquem à vontade. Se precisarem de alguma coisa é só chamar, mas cuidado, não saiam por aí sozinhos, pois os cachorros podem estranhar.
Virou as costas e voltou:
-Eu ia me esquecendo, mais tarde se ouvirem uns barulhos, não se preocupem, como eu falei hoje é dia do truco! Sabe, como é truqueiro, né?
Roberto respondeu:
-Tudo bem, do jeito que a gente ta cansado, acho que não vamu escutá nada.
Quando o homem saiu, os dois se viraram e se depararam com uma enorme cama de casal, coberta com uma colcha vermelha toda bordada, e com almofadas em forma de coração. Se olharam e começaram a rir da situação.
Roberto ficou sério de repente e disse:
- E o que que tem né? Não é porque a gente dorme na mesma cama que vamu deixá de ser macho, e ninguém precisa sabe disso, quando for contar a história vamo falá que tinha duas cama no quarto.
Alfredo balançou a cabeça negativamente e disse:
-Irmão, irmão, você é o cara mais abilolado que eu conheço. Tem certeza que você é mesmo filho da mesma mãe que eu?
Roberto consentiu com a cabeça. E os dois se deitaram.
Dormiram como uma pedra, mas no meio da noite acordaram com uma gritaria infernal vinda lá da casa:
-Truco!
-Seis mi, ladrão!
Do quartinho, Roberto foi o primeiro a falar:
-Alfredo, cê tá acordado?
-Tô! Quem dorme num calorão desse com essa gritaria? Se ainda pudesse abrir a janela,mas tem os cachorro!
-Se a gente tivesse ido andando já tinha chegado. Mamãe deve de ta preocupada, tadinha!
-Roberto, a ideia de aceitar o convite foi sua!
-Num sei o que que a gente veio fazê nesse mardita cidade, Alfredo! Se tivesse lá na roça nada disso teria acontecido! Mardito esses ladrão!
-Cala boca Roberto! Reclamar faz ainda aqui ficar mais calorento!
Enquanto os dois discutiam no quarto, na sala o truco ia longe. Em uma das mesas, os jogadores se lembraram dos hospedes do quartinho:
- Uai cumpade,quem é que ta no quartinho hoje?
-Eu emprestei pra dois troxa que encontrei perdido no posto.
-E eles dorme junto?
- Uai, dorme!
Um dos jogadores fez uma proposta:
-Gente, esse jogo tá danado de sem graça, já cansei de ganhá d’ocêis. Vamo por as coisa pra isquentá? O que ocêis acha de nois pegá um daqueis hospi e dá uma tunda? Onde já se viu, dois home durmino junto!
Uns concordaram e outros não, mas a maioria optou pela coça.
-Vamo pegá o do canto!
Entraram no quarto, uns quatro truqueiros já passados na bebida e puxaram Alfredo pelos pés tão devagar que Roberto que já havia pegado no sono nem percebeu.
Meio sem saber o que estava acontecendo, Alfredo levou uns pontapés, e safanões, sem reagir, pois estava em desvantagem.
Só pararam quando o afitrião interferiu. Levaram Alfredo para o quarto e ele se deitou gemendo.
Passaram algumas horas, sem poder fugir e sem acordar o irmão, Alfredo foi surpreendido novamente pelos truqueiros, um deles tinha ganhado uma rodada cujo premio era uma nova coça no visitante do canto. E o pobre foi surrado de novo.
Alfredo voltou para o quarto cambaleando, e desta vez empurrou o irmão para o canto da cama e tomou seu lugar.
-Eu não mereço apanhar sozinho, dormir aqui foi ideia dele! É o do canto que eles querem... Pensava enquanto o irmão ressonava ao seu lado.
Enquanto isso na sala, ao final da rodada o jogador outra vez ganhou a aposta, e já se levantava para ir buscar o hospede saco de pancadas, quando o dono da casa interveio:
-Chega de bater no coitado do canto, ele já apanhou que chega!
-Mas a aposta foi ganha, nos temos direito, ora!
-Eu não disse para não baterem, mas para não baterem no do canto. Agora, peguem o da beirada, o coitado do canto já apanhou demais!
E saíram em busca do hóspede da beirada, desta vez. Alfredo de novo entrou na pancada, pela terceira vez, já que havia trocado de lugar com o irmão.
No outro dia, Roberto acorda e nem nota o estado do irmão, cheio de hematomas e todo amassado. Dá uma espreguiçada e diz:
-Que noite péssima! Dormi tão mal. Sonhei com umas brigas, que você gemia a noite toda. Não a nada mais ruim do que uma noite mal dormida!
Alfredo, todo dolorido, faz um esforço danado para se levantar, calça suas botinas e sai do quarto mancando.
-Ôh, se há! Você nem faz ideia...
Os dois saem, e nem sinal da carona prometida. Roberto diz ao irmão:
-Alfredo, acho que você também estranhou a cama, tá com uma cara!
Sem carona, e com o corpo todo moído, Alfredo seguiu calado, escutando as sandices do irmão, o caminho de casa.