A ONÇA QUE FALAVA

Meio dia. Sol escaldante que fazia o suor descer em bicas pelo rosto. Para suavizar o calor Seu João balançava-se em uma rede de pano macio, pés cruzados, mãos por sob a cabeça e o lençol de bramante, vez por outra puxava a mão da cabeça, encostava na parede e dava um impulso na rede. Rosto carrancudo, vincas fundas na face queimada pensava nos tempos de rapaz novo. Força muita, derrubava um touro bravo com a mão que parecia uma barra de ferro. Cabra pra dar no seu couro não existia. Era temido e respeitado.

Morava agora em Itapipoca, mas tinha vindo lá das bandas do sertão de Canindé, com Dona Mocinha, mas ninguém sabia o porquê de sua vinda, se fora a seca, se numa fuzarca em algum forró após umas bicadas de cachaça matara algum desafeto, pois ninguém ganhava dele no lançar da faca. Já havia estripado muitos. Bom, o certo é que ficara muito conhecido em Canindé de São Francisco das Chagas. Estava assim Seu João em seus devaneios e reminiscências quando para na porta de sua casa um velho amigo, justamente de Canindé, montado num cavalo alazão, com arreios cobertos de prata. Em frente à casa de Seu João havia uma cerca de pau a pique. Do lado de fora da cerca pouco se via o que estava no alpendre. Então o cavaleiro gritou:

-Ô de casa.

-Ô de fora, se for de paz entre. Partiu um vozeirão do alpendre.

Então o cavaleiro desmontou do cavalo, abriu a porteira e foi entrando. Seu João pôs a mão a cima dos olhos, para enxergar mais devido o reflexo do sol, mas não reconheceu logo a pessoa. A visita foi se aproximando e João já se levantando da rede pôde ver que era o compadre Cel. Bento, da fazenda Sangria, de Canindé. Foi logo abrindo os braços e perguntou:

-Meu bom compadre. Como vai? Como está minha comadre Zefinha e os meninos que já devem estar rapazes?

-Todos bem, compadre, e mandam um abraço para o senhor.

-E que ventos os trazem por aqui compadre?

E conversa vai, conversa vem o Cel. Zé Bento findou dizendo que precisava dos favores do compadre. É que uma onça sussuarana, daquelas vermelhas e bem grandes, estava tirando o gosto com seus bodes, borregos e garrotes e a atrevida, algumas vezes, atacava até uns bois maiores. Ele já havia procurado gente em toda a parte, mas nenhum se atrevia a tentar matar a onça. Foi quando lembrou-se do compadre que já fora o maior caçador de onças e outros bichos no sertão de Canindé, lá pelos idos de 1940. Seu João coçou o queixo, balançou a cabeça e disse:

-Compadre, já faz muito tempo, hoje já não estou tão bom. O reumatismo danado me enferruja, embora eu ainda dê algumas palhetadas. Mas como não posso faltar ao compadre, eu vou. Durma hoje aqui, pois tenho muito prazer e amanhã, depois de eu comprar umas alpecartas de couro cru, eu vou. Às cinco horas da manhã seguinte os dois já estavam acordados. João chamou seu filho Jacó, o mais novo, mandou dar um banho no cavalo do compadre e dar comida para ele. Então João disse:

-Depois de tomar café quentinho, com bolo de macaxeira e tirar o gosto com um bom pedaço de carne do sol, vamos partir. Vá na frente devagarinho, que depois de fazer minhas compras na bodega eu lhe acompanharei. Dito e feito. João comprou 7 pares de alpercata de couro cru, chumbo grosso e mais apetrechos para seu bacamarte e partiu a pé lá pras 9 horas, para vencer os 130 km entre onde morava e a fazenda do compadre, que já havia partido às 5 horas da manhã. Colocou tudo em um saco e a pé saiu varando a serra de Uruburetama, passou na Pitombeira dos Paraíba, por Apuiarés, General Sampaio, povoadozinhos que pareciam fazendo de pobre. Em General Sampaio desviou para a direita, andou mais 20 quilômetros até chegar à fazenda Sangria. Quando sua comadre o viu foi uma alegria sem fim. Já se haviam passado 5 anos.Perguntou pelo marido Cel. Bento e João respondeu:

-Deve estar chegando, comadre. É porque ando ligeiro e os passos do cavalo dele não me acompanharam. A senhora sabe, uma légua eu tiro em 30 minutos e, por isso, já gastei 7 pares de chinelos de couro cru desde a minha casa.

Logo depois chegou o compadre Cel. Bento.- João você já chegou?

Você veio voando homem? João respondeu:

- Não compadre, me desculpe, mas é porque seu cavalo anda devagar. Já passava das cinco horas da tarde e depois de tomarem banho no riacho que passava a poucos metros da casa da fazenda, foram jantar. Colocaram mais conversa na fogueira, relembrando os velhos tempos e foram dormir.

No dia seguinte, à 4 horas da manhã, João já estava de pé e lubrificando o bacamarte, chamou o seu cachorro Tubarão que havia ido com ele e se prepararam para caçar a onça. O coronel também já estava de pé. João comeu farinha de mandioca com carne seca, encheu uma cabaça com água e disse ao compadre que ia pegar a bicha. O coronel recomendou muito cuidado, porque o animal era valente.

Bom, João partiu. Andou por cerca de 8 horas quando encontrou o rastro da come bode. Com pouco tempo encontrou a comedora de cordeiros sobre um pé de mulungu. Pé ante pé, aproximou-se do animal e apontou o bacamarte. A bicha pressentiu, com seu faro felino, a presença de João, estirou as patas dianteiras sobre um galho do mulungu e disse:

-Não me mate Seu João, eu tenho 3 filhotes pra criar.

João abismado olhou pro cachorro e disse:

-ARRE ÉGUA, EU NUNCA VI ONÇA FALAR.

- NEM EU, replicou o cachorro tubarão.

Antonio Tavares de Lima
Enviado por Antonio Tavares de Lima em 08/02/2012
Reeditado em 09/04/2014
Código do texto: T3488002
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.