ACREDITE SE QUISER

Tenho contado causos sobre o Gaspar, aquele comilão da sardinha com farinha e pinga de "O mundo vai acabar", e que colocou soda cáustica na cratera do dente de uma mulher em "Na lavoura de Café".

Outra coisa de que gostava bastante era ajudar na fabricação de pamonha, quando era o encarregado de carregar num balaio o milho verde que os homens colhiam na roça. Ele fazia aquilo somente para demonstrar a sua enorme força física, algo considerado meio anormal, porque a maioria daqueles homens não chegavam nem perto daquela façanha, mesmo acostumados ao trabalho pesado das fazendas.

Nessas ocaisões, além das numerosas famílias, era costume da região que se juntassem amigos e vizinhos, sendo que havia todos os tipos de gente, entre homens, mulheres, moças e rapazes, além das crianças, que seguiam para as brincadeiras no poço do córrego, logo pertinho, nos fundos do quintal. Muitas vezes a turma chegava fácil a trinta pessoas, e cada uma tinha uma função específica. Geralmente, os homens cortavam, limpavam e ralavam as espigas de milho, também cuidavam de encher os grandes tachos de cobre com água, colocados sobre fogões à lenha. Enquanto isso, as mulheres mais jovens escolhiam as palhas e faziam as sacolinhas para receber a massa de milho temperada com queijo ralado e açucar pelas mais experientes, tudo isso entre risadas e fofocas. Outras seguiam para a cosinha, pois tinham de fazer o almoço para todo aquele pessoal. Aquilo virava festa.

Aquele trabalho durava o dia inteiro, pois fabricavam uma quantidade de pamonhas muito grande, que era para ser dividido com todo mundo que estivesse colaborando, inclusive o Gaspar, lógico. Quando as primeiras sairam dos tachos, logo ele começou a desfilar as costumeiras bravatas.

- Gente, eu não posso levar as pamonhas pro meu ranchinho ao lado do paiol, porque os ratos de lá são tão grandes que os gatos tem medo deles e saem correndo que nem doidos. Então, eu prefiro comer as minhas aqui mesmo, senão, aqueles diabos me roubam todas elas na primeira noite.

- É verdade, Gaspar, que você consegue comer uma dúzia de pamonhas de cada vez? Eu duvido e aposto que não, compadre! - cutucou Alfredo, estudante numa escola agrícola e filho de um fazendeiro local.

- Uai, sô! Se você quiser perder, pode abrir a aposta, que eu topo, só se for agora, né? Já comi uns biscoitos de polvilho fritos lá dentro, mas não sou de enjeitar uma parada dessas, não, de jeito nenhum, Fredin! Só uma condição: vou almoçar mais tarde, depois do meio dia, tá certo?

- Credo, você ainda almoça, depois de comer doze pamonhas! Eu, hein! - disse o incrédulo rapaz.

- Meu filho, você esteja preparado para perder a aposta, poque, em se tratando de comida, o Gaspar nem pede licença! Eu aposto nele contra quatro de vocês, juntos! Porém, melhor deixarmos para mais tarde, porque o almoço já está quase pronto. Que tal na hora da merenda, hein? - atiçou o Sr. Juca.

- Combinados, pai! Já vou formar o meu time, isto é, se o "cara" não amarelar, né? Eu, Afonso, Dico e Pedro ...

- Imagine, pixote! Aproveite e vai logo estudando com os outros três o que vocês querem perder, tá bom? Que tal aquele bezerro da sua vaca, Fredin?

-Ah, até com a vaca junto, uai! E você, o que é que vai apostar, se não tem nada de valor?

- Ora, se tenho! Eu aposto em dias do meu trabalho, sô! Vou trabalhar três meses de graça, apenas em troca de comida e pouso, na fazenda de cada um dos seus pais! Com o Afonso, eu aceito aquele potro alazão dele; com o Dico, pode ser o chapeu e essas botas dele; já o Pedro me leva na caminhonete para Conceição das Alagoas, pois eu quero ir até lá só para assistir enterros.

- Como assim, assistir enterros, meu chapa? Não entendi ... – disse Pedro

- Bem, é que lá morre gente todo dia, por causa do bicho barbeiro. O que mais tem é a tal de doença de chagas. Quando estão acompanhando o enterro, as pessoas vão caindo pelo caminho, um prá lá, outro prá cá, tudo por causa da moléstia, que todos sabem, mata de repente, não é? Na hora dos velórios tem muita pinga e comilança, do jeito que eu gosto. Só por isto.

- Isto é conversa fiada, com certeza!

- Se o Pedro quiser comprovar o que digo, pode ficar lá o tempo que quiser, porque não há de passar fome e vai beber muita pinga!

- Você não acha que isto é lenda, puro folclore, Gaspar? Acho pouco provável que tal aconteça com tanta freqüência. Você está exagerando, ora!

- Já falei, e todos aqui sabem que não minto, nem invento!

- É verdade, ele só aumenta um pouquinho, né? – apartou Gervásio, pai do rapaz.

Dez e meia, onze horas, depois de generosas talagadas de pinga entre os homens envolvidos na “pamonhagem”, todos foram almoçar, e havia uma boa variedade de carnes de boi, porco e frango, legumes e verduras, arroz, torresmo, tutu de feijão, angu e farofa. As mulheres se revezavam nos cuidados com os tachos, que era para não haver o risco de que o cozimento da iguaria passasse do ponto.

Lógico que o assunto predominante era o “desafio” de logo mais à tarde, quando os quatro rapazes enfrentariam o Gaspar na missão de devorar pamonhas. Uns poucos se arriscaram em apostas, alguns pró, outros não acreditando que o homem conseguisse vencer aos quatro jovens daquela vez. Ele lá, bem tranquilão e de barriga cheia, só curtia os debates, com o seu costumeiro ar de zombaria.

Por volta das quatro horas da tarde, após encerrados todos os trabalhos de fabricação das pamonhas, reuniram-se todos no alpendre, inclusive as crianças, todo mundo curioso pelo desfecho daquela aposta insana.

Colocaram trinta unidades numa gamela, sobre a mesa, em volta da qual se sentaram os cinco contendores, além de mais outro tanto de pessoas, que era para se evitar qualquer possibilidade de fraude, já que cada um anotava a quantidade ingerida pelos desafiantes.

Gaspar, sossegadamente, degustava cada pedaço que colocava na boca, enquanto que os rapazes comiam afoitamente, como se a aposta fosse quem comeria mais rápido. E aquilo foi a perdição deles, porque estavam saciados já na quarta iguaria, enquanto que ele, comendo bem devagar, e conversando com a platéia, ia devorando pamonhas e mais pamonhas.

No total, os quatro oponentes conseguiram a quantidade de quatorze, só um deles conseguiu arriscar a décima quinta. Pensavam que aquilo seria o suficiente para derrotarem aquele maluco, que ainda estava consumindo a décima peça. Restavam apenas cinco na gamela, e ele pediu mais três.

Ninguém acreditava nele, mas o homem continuou tranqüilo, sem nenhuma pressa. Após mais uma hora, tinha devorado todas, num total de dezoito.

Os pobres rapazes ainda tentaram igualar a marca, mas logo desistiram da idéia, pois ele ainda disse que não estava satisfeito. O fato é que Gaspar já tinha a sua vaca com bezerro, o cavalo arreado do Afonso, as vestes do Dico e a viagem garantida para Conceição das Alagoas.

Vocês duvidam de mim, né? Tudo bem, eu lhes dou toda a razão, mas o sujeito ainda é vivo, nós podemos tirar a estória a limpo, ta bom?

Ronaldo Jose
Enviado por Ronaldo Jose em 06/02/2012
Código do texto: T3483353
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