O Caso da Justa... Aliás, da Justíssima Causa!
I
É possível que muitos acontecimentos presentes neste caso possam ter ocorrido nas veredas, estradas e caminhos por onde andou, viveu e cismou o valoroso alferes Joaquim José da Silva Xavier, mártir e herói da Inconfidência Mineira.
O fato é que em terras de Lavras Novas - um dos treze distritos que compõem o atual município de Ouro Preto - vivia um fazendeiro de nome Josimar. Embora suas terras não fossem muitas nem vastas, eram bastante produtivas e mais do que suficientes para manter a ele, a sua família e a alguns bons trabalhadores que laboravam sob as suas ordens.
No entanto – e por um motivo nesse momento ainda misterioso - o dito agricultor demitira recentemente um dos seus melhores empregados, o lavrador Manoel. Alegara justa causa em decorrência de uma pretensa e constante embriaguez do trabalhador dentro e fora do seu local de serviço.
Sabemos que o termo justa causa corresponde a todo ato faltoso do empregado que faz minar a confiança e a boa-fé existente entre as partes, tornando indesejável a continuação da relação empregatícia.
Com base no artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho - a CLT, vê-se que são vários os motivos que podem ensejar justa causa para o término do contrato de trabalho pelo empregador: ato de improbidade do empregado; incontinência de conduta ou mau procedimento; negociação habitual; condenação criminal; desídia; embriaguez habitual ou em serviço; violação de segredo da empresa; ato de indisciplina ou insubordinação; abandono de emprego; ofensas físicas; lesões à honra e à boa fama; jogos de azar e atos atentatórios à segurança nacional.
Existem certamente outras motivações que podem igualmente constituir exemplos de justas causas específicas em determinadas atividades profissionais, mas não iremos neste momento nos alongar no estudo desse tema. Dediquemo-nos exclusivamente à nossa história e ao seu enredo.
II
O fato é que o lavrador Manoel se sentira tão vexado e inconformado diante da injustiça sofrida com aquela justa causa que acabara trazendo o seu ex-patrão ao Fórum da Justiça do Trabalho da cidade de Ouro Preto. Seu objetivo era tentar reverter a situação e receber certas parcelas salariais de que se considerava merecedor.
Era por esse motivo, portanto, que naquela ocasião o juiz do trabalho se encontrava a ouvir a um jovem magricela de nome Gilsinho, uma das três testemunhas trazidas pelo advogado do reclamante para tentar provar a sua tese.
O problema naquele momento fora que – tal qual um burro velho e emperrado – o tal Gilsinho parecia ter empacado de vez no seu depoimento: não ia para frente e nem para trás. Diante de toda e qualquer pergunta que o juiz lhe fizesse, ele apenas sabia responder que só iria abrir a boca quando se encontrasse sozinho diante de Deus... e do juiz!
Após várias tentativas infrutíferas por parte de sua excelência – inclusive com algumas ameaças de mandar prender definitivamente a testemunha no xilindró da cidade – o juiz se dirigiu às partes e seus procuradores e lhes perguntou se haveria algum problema se ele a princípio ouvisse isoladamente aquele sujeito morrinhento e renitente.
Os advogados se entreolharam surpresos e se puseram a discutir durante um ou dois minutos acerca daquele insólito pedido, buscando encontrar algum outro caminho ou remédio jurídico que viesse a solucionar a questão. No entanto – diante de tamanha firmeza, persistência e teimosia por parte da testemunha empacada - resolveram não se opor à solicitação do meritíssimo.
Então o juiz se encaminhou imediatamente com o Gilsinho até um dos cômodos internos da Secretaria da Vara. Foi ali – minhas queridas leitoras e meus prezados leitores – foi exatamente ali que se passou o seguinte e estranho diálogo.
III
- Pois bem, senhor Gílson...
- Pode me chamar de Gilsinho, meritíssimo. É assim mesmo que todos me chamam por aqui...
- Tudo bem, então, seu Gilsinho. Agora que estamos a sós, poderia o senhor esclarecer de uma vez por todas os motivos que o impediram de contar diante de seus conterrâneos tudo o que sabe acerca da referida questão?
- Certamente que sim, senhor juiz. O caso é que eu não sou nenhum bobo da corte para ir abrindo o bico na frente do seu Josimar. Certas verdades podem ofender e magoar demasiadamente o brio de um homem, principalmente se reveladas ao Deus dará ou diante dos seus companheiros. Além do mais, meritíssimo, diz-se na minha terra que o peixe morre é pela boca! É ou não é?
- Decerto, mas...
- Mas o fato é que toda a vez que o seu Josimar deixava a sua fazenda para se dirigir a um lugar qualquer – fosse, por exemplo, para ir buscar uma encomenda ou entregar nos mercadinhos da região as verduras e frutas que eram colhidas em suas terras - eu é que dava o aviso para o Manoel...
- Como assim? Que aviso? O que vem a ser isso exatamente?
- Bem... É o seguinte: de longe - assim que via assentada na estrada a poeira que fora erguida na passagem da velha caminhonete do seu Josimar - fazia tremular aos quatro ventos o lenço vermelho que carrego sempre comigo, conforme o combinado com o meu compadre Manoel. Este lencinho aqui, ó...
Dizendo isso, Manoel retirou do bolso de sua calça um pedaço de pano sujo, velho e encardido a que ele insistia em chamar pelo nome de “lenço” e passou-o à mão do juiz para que este o examinasse melhor.
- Sei, mas o que isso quer dizer? E o que tem a ver com a alegação de justa causa por parte do seu patrão?
- Pois bem: naquilo que eu remexo o meu lençinho vermelho para um lado e para o outro, o compadre Manoel compreende imediatamente o sinal que eu estou lhe fazendo: fica logo sabendo que o nosso patrão acaba de sair de casa e que tomou rumo ignorado...
- Ahm!?... E aí?
- Aí é que vem a parte complicada e difícil de contar: de imediato o compadre Manoel se dirige à casa de sinhá Floripes – ou, como nós a chamamos, dona Florzinha - a bela esposa do senhor Josimar. A verdade, seu juiz, a verdade mais cristalina que pode haver nesse mundo é que o Manoel e a dona Florzinha sentem lá um chamego qualquer um pelo outro e isso já faz é tempo! É por isso que eu me vejo na impossibilidade de testemunhar sobre esse assunto na presença do meu patrão. Se eu disser uma coisa dessas diante dele e dos outros companheiros, coitada da minha pessoinha...! Primeiro que num “zás” eu perderia o meu emprego. E – como o senhor sabe - a vida está difícil, muito difícil mesmo! Em segundo lugar que nessas terras esse negócio de expor em público a honra masculina ferida e a galhada crescendo sorrateiramente na cabeça dos senhores maridos ainda é caso de morte e já custou a vida de muita gente boa, gente da melhor qualidade mesmo!
- Compreendo – respondeu o juiz – mas agora que o senhor já me contou tudo o que sabe, não há mais como ocultar essa situação, não é mesmo, seu Gilsinho?! Vai ter que confirmar tudo isso diante dos outros, principalmente que a tal da justa causa alegada pelo seu patrão não é tão justa assim como ele vem afirmando, estou certo?
- Mas de jeito nenhum que eu vou abrir o meu biquinho de lacre, senhor juiz, ainda que eu considere ser bastante justa a causa do meu patrão – aliás, justíssima até! Se me perguntarem o que sei sobre toda essa história, vou continuar negando e negando e dizendo que nada sei, feito fazia aquele tal de Sócrates, um antigo jogador da nossa seleção de futebol. Esse um mais parecia uma vitrola velha e encrencada, só sabia era dizer: “sei que nada sei, sei que nada sei, sei que nada sei...”
- Mas...
- Mas não tem mais e nem menos: eu prefiro me abster. Ou vossa excelência acha que eu sou algum bobo da corte? Não sou tolo não, não nasci ontem nem anteontem! Prefiro ver o Sol nascer quadrado a amanhecer comendo capim pela raiz. Se o meritíssimo quiser me engaiolar feito ave inútil, basta dizer que eu me encaminho com meus próprios pés para dentro da gaiola. Agora, que eu vá abrir essa boquinha na qual a mamãe dava “papinha” quando eu ainda era um bebê, isso é que vai ser difícil!
- Olha lá que eu mando mesmo lhe prender, seu Gilsinho, olha o respeito com a minha pessoa e para com o Poder Judiciário!
- Pode mandar se quiser, seu Juiz! Ligo não: quero mais é continuar vivo e vivinho da silva, ainda que na prisão...
IV
Pois bem, meus queridos amigos e amigas: o certo nisso tudo é que o tal Manoel realmente traíra – ainda que de forma indireta e por motivos extra petita – a confiança do seu patrão. Em verdade, ele o traíra da forma mais vexatória que pode haver para um homem: dentro de seu próprio lar!
Entretanto, o alegado motivo da justa causa pelo empregador – a suposta bebedeira inveterada do reclamante dentro e fora do seu local de trabalho – restou não comprovada no curso do processo, tendo o patrão que efetuar ao final o pagamento das parcelas salariais que eram devidas ao homem.
Mas o fato - meus camaradas – o fato é que aquela conversa sigilosa presenciada apenas pela testemunha, por Deus e pelo juiz, acabou ficando mesmo restrita àquelas três pessoas. E ao que se sabe até esse momento nenhuma das três deu com a língua nos dentes!
Agora, mudando um pouco de assunto: dizem que ainda hoje o Manoel continua se encontrando furtivamente e às escondidas com a sua amada, a nossa querida sinhá Florzinha. Como prova disso basta que se assente um pouco a poeira levantada na passagem da caminhonete do seu Josimar por uma das veredas, estradas e caminhos que circundam a misteriosa Ouro Preto para que algumas pessoas possam ver na beira da estrada um sujeitinho magro e renitente agitando indolentemente para lá e para cá um lencinho velho e encardido, como se aquele fosse o sinal combinado entre os antigos inconfidentes para deflagrar a insurreição no chamado dia da “derrama”.
Mas se prestarmos um tantinho mais de atenção poderemos perceber um pouco mais adiante outro indivíduo se esgueirando por entre as folhagens das árvores e o mato crescido que recobre a fazenda do seu Josimar. Ele caminha exatamente no rumo da casa de dona Florzinha.
Se isso é de fato verdade, eu não saberia confirmar para vocês. O certo é que a vida - meus prezados - a vida continua cheinha de mistérios. E dois dos maiores são exatamente aqueles que tratam do amor e da liberdade!