CONVITE PARA VIAJAR
CONVITE PARA VIAJAR
Salete dormia pouco. Acordava cedo, ainda madrugada, sentava-se à máquina de costura, pisava no pedal e começava sua jornada de trabalho. Não tinha tempo nem para tomar café. Os filhos só acordavam as seis e ela já estava trabalhando bem antes do sol nascer. O marido viajava sempre, vinha em casa, tomava banho, trocava de roupa, fazia uma refeição, dormia um pouco e voltava para o volante de seu possante caminhão. Anos nesta rotina, que ela esquecia-se de quando aquilo começara. Após o nascimento do terceiro filho, a situação financeira ficou muito apertada, o aluguel aumentou, com a família maior tiveram que mudar para uma casa de dois quartos, e a solução foi trabalhar em casa. Não sabia fazer muitas coisas, nem poderia se afastar dos filhos, preocupava-se com quem iria deixa-los. Assim, conversando com uma cunhada, que também sabia costurar, começou a pegar costuras para uma fabrica. Recebia pouco pelo seu suado trabalho, mas sempre ajudava.
Certa madrugada, por volta das duas e meia, Salete estava dormindo, e teve a sensação que alguém entrava em seu quarto. Não conseguia abrir os olhos pois eles estava m pesados demais. Ela viu a silhueta muito magra, sobrevoando sua cama, até que foi descendo e chegou quase a tocar o chão, pairava acima do assoalho. Era uma velhinha de cabelos brancos, vestido estampadinho, lenço amarrado em três pontas nos cabelos, com um nariz enorme, e dois olhos azuis tão lindos que pareciam duas continhas. Ela apresentou-se, falando baixinho, perto do ouvido de Salete. “– Minha sobrinha, você sabe quem sou não?”, Salete respondeu: - Claro que sei, tia Mariquinha. A tia falou-lhe docemente e feliz: - “Eu fiz a viagem, sabes, né, e gostei tanto de lá, do outro lado, que vim te chamar para ir comigo. Lá não tem dor, não tem frio, não tem fome”. Instantaneamente duas lágrimas de saudade começaram a escorrer pelas faces de Salete, lembrou-se de sua infância ao lado da tia, apanhando pedaços de carvão, que escondiam no avental para levar e usar no fogão a lenha. Eram tempos difíceis, na época da guerra. A tia ajudava a sobrinha como podia, e eram muito parceiras e companheiras. Salete respondeu tristemente para a tia: “Não posso, ir agora, a senhora viu no outro quarto, os meus filhos são pequenas crianças, precisam ainda muito de mim, meu marido vive por estas estradas. Se eles acordarem e não me encontrarem vão ficar desesperados". Tia Mariquinha compreendeu o dilema de Salete e partiu calmamente, enquanto Salete via a tia sumir na penumbra do quarto. Salete deu um salto da cama, pensando que tinha sonhado, não conseguiu mais dormir. Naquela manhã, não conseguiu costurar, ao fazer o café se descontrolou e deixou o pó cair no meio da cozinha. Esperou os filhos irem para a escola e foi até a casa da irmã que ficava próxima. Perguntou para a irmã caçula se ela tinha notícias de sua terra natal. A irmã disse que não, mal acabou de falar, o telefone tocou. A irmã atendeu, e passou para Salete. Era a mãe de Salete do outro lado, avisando que tinha recebido uma carta de uma prima, informando o falecimento de tia Mariquinha. Salete não precisou ouvir o resto, ficou muito emocionada e chorou angustiada por alguns minutos. Não contou o ocorrido pelo telefone, alguns dias depois foi visitar sua outra irmã e falou com sua mãe. Ela mostrou-lhe a carta da prima. Contava o sofrimento que tia Mariquinha tinha passado nos últimos dias de sua vida. Como era uma senhora solteira sem filhos, ao envelhecer, foi ficando na casa dos parentes mais próximos, até que a cunhada da mãe de Salete resolveu mandá-la para o abrigo de velhinhos desamparados, e por lá ela ficou ainda alguns anos. Salete chorou muito mais, ao confrontar-se com a verdade nua e crua, finalmente sabia por que a tia sentia-se livre e feliz na dimensão que agora habitava.