O Uivo
Juarez tinha 29 anos, alto, 1,91 centímetros, braços longos, possuidor de uma magreza anoréxica, contudo, comia como um leão, e não engordava 1 quilo sequer. Andava de forma inclinada, parecendo sempre está carregando algum peso nas costas. A pele muito branca e misteriosamente pálida, apesar do sol castigante do sertão, e com olheiras gigantes que concebiam a ele uma aparência de zumbi. Muito calado e bastante reservado, ele era o caçula de outros seis irmãos, curiosamente seu pai também era o sétimo filho de uma prole também de sete, ou seja, Juarez era o sétimo filho do sétimo filho. Apesar da aparência frágil e doentia Juarez era bastante trabalhador e enfrentava uma jornada de quase dez horas todos os dias no sítio de meu sogro, João Carlos, que todos chamavam Seu Joca. Era pau para toda obra. Ajudava com o gado, cortava palma, fazia o cilo, dirigia o trator, arava a terra, colhia, plantava, alimentava os animais, lavava a pocilga e ainda corria vaquejadas. Morava em uma pequena casa feita de taipa ao lado da casa do patrão com sua esposa e seus três filhos. Viviam bem. Além do emprego no sitio ele cuidava de um pequeno pedaço de terra onde cultivava milho, mandioca e feijão, e tinha três vacas de onde tirava um dinheirinho a mais vendendo leite e queijo coalho. Sua esposa Anete ajudava vendendo doces caseiros em compota com todos os tipos de frutas da região e ainda um saboroso doce de leite de bolota que era muito apreciado na vizinhança, feitos por ela mesma. Não faltava nada para as crianças, eram todas bem alimentadas, sadias e muito “malinas”. A casa de taipa brevemente seria substituída por uma feita de tijolos. Não parecia ter vícios ,embora, vez ou outra tomava umas pingas no Bar do Mané de Laurinha e chegava falante e sorridente, destoando do costumeiro Juarez calado e sorumbático. Respeitava a mulher e não se sabia de nenhuma pulada de cerca que ele houvesse cometido.
De um mês para cá observei que Anete andava calada e cabisbaixa demais, seu comportamento estava diferente, ela não exibia mais aquela alegria espontânea que sempre lhe acompanhava. Aproveitei um dia em que ela foi levar um doce de caju lá em casa e a interroguei sobre sua visível tristeza.
_E então minha “cumade” o que está acontecendo? Parece tão triste?
_Né nada não meu “Cumpade” e só um pequeno mal estar.
_Que mal estar é esse que já tem um mês? Isso não é mal estar. Tem algum problema com os meus afilhados? Pode dizer, você sabe que estou pronto para ajudar vocês a qualquer hora.
_Eu sei meu “cumpade”, mas não quero apoquentar o senhor com nossos problemas.
_Que é isso mulher, deixa de besteira, desembucha logo.
_É o Juarez.
_ O Que foi que meu “cumpade” fez?
_Aquele amarelo “maguelo” sem vergonha arrumou uma rapariga.
_Não acredito nisso minha “cumade”, o Juarez não é homem disso não. Tem certeza?
_Só pode ser mulher doutor Pedro. De uns tempos pra cá, uma vez por mês, ele sai de casa dizendo que vai no Mané de Laurinha e só volta de manhã, ele nunca fez isso nesses sete anos que estamos casados. Teve um dia que fiquei brechando pela porta a hora que ele chegou e ele estava sem camisa e parecia fora de si. Só pode ser uma rapariga que enfeitiçou meu Juarez. Se eu pego essa bandida eu mato.
_Calma Anete não se precipite, eu já tomei umas com o meu “cumpade” e sei que ele nunca faria isso com você, pode acreditar. Eu sabia que estava acontecendo alguma coisa, a sua mudança foi a olhos vistos, mas agora que você me esclareceu o motivo estou mais despreocupado, tenho certeza que é algum outro problema, menos uma rapariga, Juarez é arriado por você minha “cumade”. Não se preocupe mais eu vou dar um jeito de descobrir o que está acontecendo.
_ Eu fico muito agradecida pela ajuda, mas tenho certeza que é mulher. Tem piranha na lagoa, ah isso tem.
_Tenha calma, já disse que vou descobrir o que é. Mudando de assunto minha “cumade”, o Seu Joca tem reclamado de sumiço de animais lá no sítio?
_Não, lá está tudo bem.
_Hoje na loja eu ouvi muito sitiante e fazendeiro reclamando que alguns animais estavam sumindo, e alguns foram encontrados mortos, só a carcaça, como se algum bicho os tivesse comido.
_Eu escutei umas estórias dessas também, a Branquinha de totonho tava dizendo que lá pras bandas de Olhos d água tinha sumido uns porcos que depois foram encontrados mortos.
_Espero que não seja nada demais e descubram logo isso. Estão suspeitando de uma onça, só que eu nunca soube de onça pelos lados de cá. Deixa prá lá, eu tenho que voltar para a loja. Pode deixar que hoje mesmo eu vou conversar com o Juarez.
_Tá bom meu “cumpade”, bom serviço.
_Obrigado.
Saí da loja por volta das 8 da noite e me dirigi até a bodega de Mané de Laurinha, que hoje estava bastante movimentada, devido a ser sexta-feira e principalmente pelo zunzunzum que corria na cidade pelos desaparecimentos de animais. A cidade estava em polvorosa e as suspeitas de existir uma onça perderam força e o que estava agora na berlinda era um Lobisomem, inclusive com testemunhos de terem visto o bicho. Avistei em um canto do salão o Juarez, sozinho, como de costume, com uma garrafa de Sanhaçu na mesa e observando uma discussão acalorada que se formou a respeito do tal lobisomem. Aproximei-me e sentei na cadeira a seu lado. Ele sem dizer nada dirigiu o copo ate mim e encheu. Virei a dose fazendo uma careta e dizendo um palavrão, por pura mania, já que a cachaça era muito boa. Não prestei muita atenção na conversa, estava tentando me concentrar na música que tocava abafada pelas vozes excitadas dos frequentadores do bar, a música era Filho Sem Sorte com Kara Véia cantando. Depois de algum tempo ali ouvindo aquela música triste, sem falar nada, enquanto Juarez escutava a conversa de forma bem interessada, iniciei uma prosa.
_Tá com dinheiro hein meu “cumpade”, bebendo Sanhaçu. Recebeu dinheiro hoje?
_Não. Pedi porque sabia que ia encontrar o senhor. Quando tava saindo de casa a Anete disse que o senhor vinha pra aqui. Quem vai pagar é o senhor.
_Tá ficando esperto hein meu “Cumpade”.
Ele deu uma boa risada, e continuou compenetrado no debate. Ficamos por ali bebendo e petiscando, eu corri da cachaça, a última experiência que tive bebendo somente cachaça não foi das melhores, parti para a cerveja, Juarez continuou na pinga. Comemos uma porção de tripinha de porco frita e dois caldos de peixe. Era quase meia-noite quando nos encaminhamos para o meu carro e fomos embora, aproveitei para alertar Juarez sobre a desconfiança de sua esposa. Ele disse que estava percebendo uma mudança mesmo em Anete, porém, negou que estivesse com algum rabo de saia, entretanto, admitiu que algumas vezes, recentemente, mais precisamente de uns quatro meses para cá, chegava em casa sem saber como e não lembrava do que tinha acontecido, só sabia que tinha saído lá do Mané e depois acordava deitado no sofá pela manhã, sem camisa e às vezes todo arranhado. O sítio ficava a 4 quilômetros da cidade no povoado do Barro Vermelho, saímos da BR asfaltada e pegamos uma estrada de barro que nos levaria até o sítio, faltando pouco menos de um quilômetro para chegarmos em casa, olhei para o relógio digital que fica no painel do carro e faltava 1 minuto para meia-noite, um vento gelado percorreu todo o carro, olhei para o lado e vi que Juarez me olhava com os olhos esbugalhados e suava em profusão, perguntei:
_O que há “Cumpade”?
_Estou me sentindo mal. Pare o carro que eu vou descer.
_Peraí que já está chegando.
_Não, tem que ser agora. Não vai dar tempo.
E abriu a porta e desceu do carro ainda em movimento e correu para o meio do mato e desapareceu. Eu desci sem entender nada e gritei:
_Porra Juarez, não dava para segurar isso até em casa. Que dor de barriga é essa hein meu amigo? Devem ter sido aquelas tripinhas de porco, pensei.
Silêncio total. Juarez nada respondeu. Então gritei de novo:
_Oh meu “cumpade”, morreu foi? Quer que eu te espere? Ou posso ir? Aqui tá um frio danado.
De repente ouvi um som gutural e bestial tirado das entranhas mais profundas do ser. O gemido, ou grito, foi mudando o tom e se tornando um uivo, desesperado, melancólico e profundamente triste, que arrepiaram todos os pelos do meu corpo e fez bambear minhas pernas. Segurei-me no capô do carro para não cair, não que eu fosse um medroso ou covarde, nada disso, só não era muito destemido e ainda por cima já tinha bebido todas, em conseqüência disso o equilíbrio me faltou, mais pelo álcool do que pelo pavor. Então eu vi. Uma figura gigante saindo de dentro do mato, parecia um cachorro, no entanto era do tamanho de um cavalo, colocou as patas dianteiras para cima e ficou ainda maior, deslocou-se dando pequenos pulos e de repente aumentou a velocidade e veio em minha direção, antes de fugir em disparada ainda vi o brilho dos olhos vermelhos da criatura refletindo a luz da lua cheia que nos iluminava, e ouvi o rosnado assustador que ela fazia, pouco antes de chegar à porta do sítio, ela, a criatura, me alcançou. Ergueu-me facilmente pelo colarinho da camisa e virou-me para olhar-me de frente. Ele tinha um focinho medonho, com dentes caninos enormes saindo da cavidade bucal, pingando baba branca e pegajosa que escorreu em minha camisa, as patas eram do tamanho de uma pá com as unhas enormes e afiadas, os olhos eram vermelhos cor de sangue, as orelhas grandes e pontudas, e o hálito insuportavelmente fedorento, bafo de carne podre, o corpo todo peludo e uma calda que ficava balançando como a dos cachorros, percebi que ele tinha algo de familiar, porém, era sem dúvida um lobisomem, aproximou o focinho bem perto do meu rosto e começou a me cheirar e uivou e rosnou enfurecidamente. Depois disso não lembro mais de nada. Acordei no outro dia deitado em minha cama com minha mulher me olhando com cara de poucos amigos.
_O que aconteceu? Por que está me olhando com essa cara?
_Que coisa mais feia você aprontou. Como é que você bebe tanto assim? Não lembra de nada né, seu descarado, quando eu cheguei ontem com as meninas do aniversário da tia Lúcia, encontrei você deitado em frente à porta, fedendo a cachaça e a merda, você tava todo cagado. Que decepção. Todo cagado. Meu Deus do céu nunca pensei que presenciaria uma cena dessas.
_Que se tá dizendo mulher? Que conversa de cagado é ... ,
Num estalo lembrou do acontecido, e gritou
_O lobisomem, vocês viram o lobisomem? Cadê o Juarez, ele deve ter sido comido pelo lobisomem? Vocês não viram ele? Era assustador?
_Que conversa é essa de lobisomem, deixa de inventar estória seu pau d água, cachaceiro sem vergonha.
_ Acredite em mim mulher eu tô falando a verdade. E ele deve ter pego o Juarez. Coitado do Juarez.
_Coitado do Juarez nada, seu bebum, o Juarez já esteve aqui hoje para ver como você estava, e disse que ontem você tinha bebido mais do que o normal e estava bem estranho, e que tinha corrido para o mato com dor de barriga, e então ele foi embora. E voltou aqui hoje para saber se estava tudo bem.
_Peraí, quem correu para o mato foi o Juarez, não foi eu.
_Ah, por favor Pedro me poupe de suas desculpas esfarrapadas, eu vi o estado em que você estava, você não conseguia nem ficar em pé. Faça-me o favor.
Dito isso saiu batendo a porta do quarto. Eu fiquei ali ruminando os pensamentos, na duvida se eu tinha visto mesmo o lobisomem, ou foi tudo imaginação. Tinha sido muito real para não ser verdade. Isso aconteceu há cinco dias, e por via das dúvidas forjei algumas balas de prata e adaptei-as na minha velha garrucha, e estou andando com uns espinhos de laranjeira que foi plantada em uma sexta-feira a meia-noite no bolso. Prevenir é melhor do que remediar, já dizia a minha querida Vó.