Cabeça de Fogo

Cabeça de Fogo mereceria um capítulo a parte se Alberto resolvesse escrever a narrativa de sua aventura de cem dias. Quando voltou à beira do Rio Pará naquela tarde, com uma inegável vontade de reencontrar o parceiro Sabonete, deparou-se com o homem ruivo estirado à sombra da ponte, exatamente onde estivera pela manhã quando conheceu Dr. Lauro. O estranho o cumprimentou expansivamente, mostrando-se ansioso por uma boa prosa. Apresentou-se com naturalidade, com o cômico apelido do pássaro comum nos capinzais de Minas e São Paulo – Pode crer, ele disse, não é por causa da lenda da assombração cabeça de fogo, é por causa do pássaro topetudo.

Como outros tantos que conheceu no trecho, Cabeça de Fogo também tinha aquela necessidade incontrolável de falar. Era sempre aquele monólogo sem exigência de participação do interlocutor, como se os pensamentos e lembranças repisados em horas e horas de solidão carecessem sopitar, como as lavas incandescentes num vulcão ativo.

_ Sabe? Sai de casa aos dezessete anos. Nem sei quantos anos faz isso. Rodei e rodei. Hoje tanto faz estar aqui como ali. Em qualquer lugar onde a noite me apanhar eu estou em casa. Trabalhar? Não senhor. Não é pra mim. Gosto muito é de conhecer as coisas. Tenho sede disso, coisas novas, coisas velhas de que eu não tenha ainda conhecimento, é disso que estou atrás. Mas... Trabalhar não. Está por fora. Trabalhei na minha adolescência sim. Meio que forçado por meu pai. Ele tinha um chavão: “o trabalho dignifica o homem.” Mas eu não conseguia ver dignidade no velho que apesar de trabalhar tanto não conseguia dar à sua família o mínimo de conforto. Quanto mais trabalhávamos, mais pobres ficávamos, até que ele morreu, seco de tanto trabalhar, afundado nas dívidas. Deixou-nos uma ridícula pensão com a qual minha mãe deve estar se virando até hoje. Tivemos que mendigar para pagar o funeral daquele digno trabalhador brasileiro. Saí do cemitério com essa promessa: nunca mais trabalharei na minha vida...

Alberto havia se sentado de frente para o estranho exemplar humano. Ouvia com certa atenção ao seu discurso anti trabalhista, embora tenha percebido que para o outro era indiferente que estivesse ou não interessado.

_ Imagine que quando o Rei Davi rogou uma praga sobre Joab por este haver matado Abner, ele disse: “Que o sangue de Abner caia sobre a cabeça de Joab e de toda a sua família! Não faltem jamais em sua casa homens atacados de sarna ou lepra, que trabalhem assalariados, caiam pela espada, definhem de fome!*” Veja bem que para o Rei Davi, trabalhar de empregado era flagelo que figurava entre os piores. Não trabalho há muitos anos e não me faz falta. Vivo com o que a natureza me dá. E vou lhe dizer uma grande verdade: em todos esses anos no trecho já passei muita dificuldade. Já passei frio, tomei muita chuva no lombo e sol quente na moleira, mas fome nunca passei. Se não se acha por aí uma alma caridosa que nos mate a fome por esses matos se acha muitas espécies vegetais nutritivas e boas para o consumo. Trabalhar, meu amigo. É Nunca!

Cabeça de Fogo ergueu-se de repente como que impelido por uma força estranha, apanhou o saco de estopa, sua bagagem, que até bem há pouco lhe servia de travesseiro, ajeitou o boné sobre os cabelos vermelhos e subiu o pequeno aclive que levava à BR 262. Seguiu seu caminho sem dizer mais palavra.

Alberto concluiu que ele tinha sérios problemas mentais. De certa forma sentiu-se aliviado pela partida do outro. Falava demais!

*II Sm 3, 29

Obs.: Fragmento do romance "Cem dias sem laços" de minha autoria que publico em formato de folhetim no Fazine Entre Aspas.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 27/01/2012
Reeditado em 28/01/2012
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