O homem das batatas
Por Rodrigo Capella*
Estava com quase vinte e cinco anos e ainda sonhava em encontrar o homem perfeito. Não, eu não queria um príncipe encantado montado num cavalo branco. Diferente das mulheres da minha idade, eu procurava apenas um homem sincero e com todos os dentes bem escovados.
Iniciei a busca pela internet, estabelecendo conversas virtuais com possíveis candidatos, dos mais variados tipos e tamanhos. No total, foram cinqüenta encontros cibernéticos ou, se você preferir, duzentas e dez horas dedicadas à procura da minha cara metade. Resultado: três idas ao cinema, assistindo péssimos filmes. Fui agarrada por um caipira, beijei o rosto de um flanelinha e um cozinheiro chamado Zé teve uma crise de asma no meio do filme e me abandonou sentada na cadeira.
Insatisfeita, recorri aos jornais e publiquei um anúncio enorme, com a seguinte mensagem: “loira, alta e gostosa procura homem sincero para relacionamento duradouro. Envie currículo e foto para o seguinte endereço....”. Tá, tudo bem, eu confesso que exagerei um pouco. Faz cinco anos que não freqüento uma academia e nem ando no calçadão da praia. Tenho dez quilos acima do peso ideal. Mas, isso os homens não reparam ou, pelo menos, não deveriam.
Resultado: recebi vinte e nove cartas, todas com foto 3x4, escondendo o corpo e a barriga dos candidatos. Olhei todo o material, arremessei longe e fiz uma bela cesta de três pontos, acertando o lixo da cozinha. Novamente, o meu plano tinha falhado, o que me desestimulava bastante. Recorria ao sexto sentido, fazendo perguntas variadas e, depois de alguns dias, me deu um sinal de esperança: Alex, meu colega de faculdade poderia me ajudar.
Disquei oito números no telefone e ouvi uma voz amiga:
- Fala linda, há quanto tempo....
- Alex, Alex, sua voz continua a mesma.
- Amor, eu amo a minha voz.
Demos muitas risadas, durante longos minutos. As gargalhadas se misturaram como se nós fossemos uma única pessoa.
- Mas, me diga, o que você precisa?
- Passei vinte e cinco anos procurando o homem perfeito para mim. Participei de conversas via internet, coloquei um anúncio no jornal e nada, nada deu certo. O que eu posso fazer, meu amigo?
- Ufa! Amiga achei que você estava doente. Relaxa, de homem eu entendo. Já tive vários namorados, um mais belo do que o outro. Um deles até me levava café na cama e me chamava de Lele, ai, que meigo. Linda, você quer um conselho? Aqui vai: cotidiano, cotidiano é a palavra-chave.
- Como assim?
- Repare nos homens que estão perto de você. Eu, por exemplo, já transei com meu professor de espanhol, com o porteiro do meu antigo prédio, com o encanador. Eu repito: repare nos homens que estão perto de você, principalmente nos que vão de shorts ao restaurante, os que fazem musculação na praia... Bingo! Lá está o homem perfeito, se é que ele existe, amor.
- Alex, obrigada, você abriu o caminho.
- De nada. Eu queria abrir outra coisa.. Hum... Mas, o João está viajando...
Desliguei o telefone e mandei um beijo para meu fiel amigo. Estava na hora de ir à luta, de encontrar o meu homem. Cotidiano. Repeti essa palavra durante longos minutos e construi mentalmente a minha rotina: acordo ás sete, tomo café e vou para a faculdade. Almoço em companhia de meu amigo Jone e volto para casa. Lá, assisto desenho animado até ás oito da noite, quando minha mãe chega e me pergunta: “filha, não tá na hora de você arrumar um emprego?”. Eu respondo: “não, só no mês que vem”. Subo para quarto e faço anotações no meu diário durante duas horas. Depois, vou dormir e acordo ás sete.
Cotidiano, cotidiano. É claro, o meu homem perfeito só podia estar na faculdade. Jone? Não, Jone não. Ele é muito feio, parece um espantalho com mau hálito. Ah! O cara que serve batatas durante o almoço. Ele é muito lindo e vive me olhando meio estranho, diferente. O Jone chegou a comentar, mas não dei muita bola. Bingo! Ele era a minha cara metade.
No dia seguinte, não tive dúvidas: entrei na fila das batatas, e, respirei fundo, para entregar um bilhete à tampa da minha panela: “eu sei que você não me conhece, mas estou à procura do meu príncipe encantado e sei que ele é você. Me liga. Meu número é....”.
- Alô.
Timidamente, eu não respondi. Achei que era ele. A minha mão suava, o cabelo se desmanchava, o esmalte saia da unha, eu queria me atirar da janela. Pena que ela estava fechada.
- Alô, quem é?
- O cara das batatas.
Rimos bastante, minutos após minutos. Minha mandíbula doeu, fiquei nervosa, queria me matar.
- Que bom que você ligou.
- Obrigado.
O silêncio sempre surge do nada, para dizer nada, para causar surpresa.
- Oi, você está ai?
- Sim, estou no telefone.
- Estava pensando em sair hoje á noite, que tal?
- Hoje, hoje a noite?
- É, você pode?
Fiz alguns segundos de suspense. Eu queria muito, mas nessa hora a mulher precisa se valorizar.
- Alô, posso, claro, posso sim. Me pegue às oito, tá, ás oito!
- Tudo bem, ás oito.
- Beijos, até mais.
- Perai, e o seu endereço?
- Anota. É avenida....
Coloquei o telefone no gancho e disquei os oito números de Alex.
- Amigo, entreguei um bilhete pra um homem, ele me ligou, vamos sair daqui a pouco.
- Ele é bonito? Como ele é?
- Moreno, olhos azuis, mãos fortes e tem bom hálito.
- Ótimo, o bom hálito é muito importante. Ele tem mão firmes, mãos de super-homem? E as unhas, são bem cuidadas?
- As mãos parecem um tanque de guerra, são muito fortes. Já as unhas, eu não reparei.
- É que eu adoro mãos.
- Sim, que bom, mas o que eu faço?
- Beija ele, uai. O que você quer mais?
- Eu não sei, não sei se ele é o homem perfeito pra mim. Eu queria fazer um teste.
- Teste. Ótima idéia. Eu fiz isso uma vez. Foi esplendoroso!
- E deu certo?
- Dei, dei sim, quer dizer, deu certo. Fiz com o entregador de pizza, cada vez que ele entregava a pizza, eu fazia uma pergunta diferente. E bingo!
- Quantas perguntas são?
- Apenas duas, minha querida, duas perguntinhas e você vai chegar a uma decisão.
- E qual é a primeira?
- Vamos lá. É o seguinte: você vai simular um desmaio e vai pedir a ajuda dele. Se ele fizer respiração boca a boca é porque você está diante de um safado, agora se ele chamar a ambulância é porque você escolheu o homem certo. Faz esse teste hoje a noite e depois me conta. Agora vou dormir. Beijos e boa sorte, minha linda.
- Obrigada, Alex, boa noite.
Fomos jantar, eu e o homem das batatas. O restaurante era muito simples, mas a comida estava bem temperada. Conversamos sobre futebol, vôlei e a destruição das torres gêmeas. A conversa fluía agradavelmente e já estava na hora de seguir os conselhos de meu amigo. Minutos depois, eu contaria tudo a ele. Disquei os oito números de Alex e:
- Amigo, você está acordado?
- Sim, quer dizer, mais ou menos. Meus olhos estavam fechados, na verdade
piscando. Eu estava contando as estrelinhas coladas no teto de meu quarto. Uma mais linda que a outra.
- Acabei de voltar do jantar e queria te contar como foram as coisas.
- Conte, estou curioso. Vamos! Ele te beijou?
- Tentei desmaiar, mas não consegui, coloquei tudo a perder, que droga. Que droga, o que eu faço?
- Calma linda, calma. Vocês se beijaram?
- Ele me deu um selinho em frente ao meu prédio, nossa, que selinho, ele beija muito bem. Parece um pássaro bebendo água.
- Ótimo, isso é muito bom, eu adoro pássaros. E rolou alguma coisa mais?
- Mais nada, o que eu faço agora?
- Vai dormir, descansa e marca um outro encontro com esse homem. Aproveite a vida.
- Mas, e o teste? Como fica?
- Você quer continuar?
- Claro, lógico que sim. Qual é a última pergunta?
- Dê um beijo na boca dele, agarre o homem por trás e pergunte: ”você quer casar comigo?”. Preste atenção na reação dele e, depois, me conte tudo, ok? Tim tim por tim tim.
- Claro, nós combinamos de ir ao parque amanhã pela tarde. Vou fazer isso e depois te conto os detalhes.
Fui dormir e acordei com a campainha tocando. Era o homem das batatas segurando um vaso de flores vermelhas e brancas. Agradeci e coloquei no centro da mesa de jantar. Tomei um banho rápido e fomos caminhando até o parque, onde tomamos um delicioso sorvete e alimentamos uns pássaros, espalhados pela grama. Segui as orientações de meu amigo Alex e tentei fazer o que ele pediu, mas novamente coloquei tudo a perder. Disquei os oito números de Alex e:
- Amigo, não consegui de novo. Foi um horror. Eu não sei o que fazer, estou perdida, triste, sem rumo.
- Vocês vão sair outra vez?
- Sim, vamos ao cinema hoje à noite. Por que? Você tem um outro teste?
- Não, não tenho.
- E o que eu faço?
- Curta a vida, beije o seu homem, seja feliz.
- Alex, mas e o teste? Eu quero fazer um teste com ele? Eu preciso ter certeza de que ele é o meu homem ideal.
- Minha linda, preste atenção: esse teste nunca existiu.
- Como assim?
- Eu inventei tudo pra testar você, meu amor. Na última vez que nós nos vimos, há cerca de um mês lá na floricultura, meu coração disparou, senti algo estranho. Pela primeira vez, depois de quinze anos e dois meses, eu estava gostando de uma mulher. ]
- Ahn? Como assim? Tá acontecendo alguma coisa?
- É isso. Eu não sou mais gay, não sou somente gay. Eu agora jogo pros dois
lados, sou ..., você me entende, ne? Eu quero ficar com você. Eu sei que é uma situação difícil, mas eu queria uma chance, apenas uma chancesinha, ai, divina, minha linda. Então, como vai ser?
- Eu não sei, tá tudo muito confuso. A gente pode se falar amanhã?
- Claro, linda, podemos sim. Eu te ligo amanhã, antes do galo cantar, ai, o galo.
Eu gosto de galos.
(*) Rodrigo Capella é escritor, poeta e jornalista. Autor de vários livros, entre eles “Transroca, o navio proibido” (Zouk, 2005), que vai ser adaptado para o cinema pelo cineasta Ricardo Zimmer. www.rodrigocapella.com.br