116 - ARROZ DOCE...
Na minha meninice morávamos em uma fazenda no município de Uberaba- MG, onde meu Pai foi desbravando no plantar da cana de açúcar, construída a sede e outras muitas casas para os trabalhadores que em sua maioria eram nordestinos e entre tais famílias uma era descendente de italianos, e entre estes se destacava uma moça alta, loira, que sempre usava longas saias e blusas apertadas. Esta moça esticava seus olhos verdes interrogadores no meu Pai, mensagens veladas que só o coração na certa saberia decifrar, minha mãe esticava seus olhos negros enciumados naquela moça, havia no ar mensagens sendo trocadas, mensagens de amor, de perigo, de ciúmes enfim... À tardinha bastava meu Pai chegar com seu caminhão vindo da roça, que a moça com as mais variadas desculpas também chegava, ajudava no preparo da janta, no lavar dos pratos...
Minha Mãe, uma pernambucana da família Pimentel, mulher decidida, firme, era ela que matava os porcos, frangos, cabritos, piedade parecia não existir no seu coração. E a moça insistia com seus belos olhos verdes a enviar mensagens cifradas para o meu Pai, minha Mãe afiava a sua peixeira falava cantarolando que se confirmasse o que suspeitava, meu Pai até poderia fugir com a Italiana, mas antes ela cortaria as suas bolas e penduraria naqueles paus atravessados sobre o fogão de lenha onde se colocavam as lingüiças e toucinhos para serem defumados, meu Pai tinha toda certeza que coragem pra fazer tal proeza ela tinha de sobra.
Mas o peixe morre é pela boca, um dia a Moça num descuido falou o que sonhava, disse que se meu Pai ficasse viúvo ela se casaria com ele, não daria nem tempo para a defunta esposa esfriar o corpo dentro do caixão. Pronto! Era gota dágua que faltava para que o copo dos ciúmes transbordasse, minha Mãe se pos a matutar uma maneira de como acabar com o fogo da branquela, mas teria que ser feito sem melindrar os seus pais, que eram amigos e compadres de longa data. Certo dia minha Mãe labutando com um imenso caldeirão de arroz doce, mexia sem parar para que não grudasse no fundo e queimasse, num sem querer olhando pela janela que dava para o lado da colônia dos empregados, lá vinha a dita moça com sua saia longa e rodada, blusa apertada e decotada, e ela chegaria com as desculpas de sempre.
Minha Mãe havia criado uma cadela, filhote enjeitado, da raça fila, ficaram tão amigas que até no olhar se entendiam, adulta face a sua ferocidade durante o dia ficava aprisionada em um cercado, um tosco canil, minha mãe cuidadosamente afastou o caldeirão para o fundo do fogão onde o fogo é mais brando, disfarçadamente foi até o cercado e destramelou a porteira, a cadela se chamava Diana, minha Mãe olhando para os olhos dela e olhando também na direção do mandiocal, apontou, a cadela levantou a cabeça e o rabo e no meio das mandiocas saiu procurando por aquilo que na certa não sabia o que era, saindo em um descampado a Moça avistou, a Diana se estacou, a Moça também, mensagens no ar, a cachorra abaixando sinalizou que atacaria e a moça entendeu a mensagem e arregalando os olhos estremeceu numa louca corrida de volta pra sua casa, seus gritos por socorro estrondaram por toda a colônia, e todos no acudir, mas na passagem da porteira a Diana já estava agarrada na sua saia, em ferozes sacudidelas a saia foi estraçalhando, apesar de muitas pessoas no acudir a cadela só se deu por contente quando arrancou a saia ou pedaços da saia, e correu na direção da nossa casa carregando seu precioso troféu, e o entregou para a minha Mãe que sem pestanejar atirou pra dentro do canil aqueles farrapos coloridos, prendendo em seguida a cachorra, muitas pessoas se dirigiam para a nossa casa, e ela rapidamente escondeu o caldeirão de arroz doce na dispensa. Logo logo em nossa casa todos os vizinhos se acomodaram, e o comentário era um só, a Diana deixou a moça quase nua, entre gargalhadas e suspiros, minha Mãe se admirava do acontecido, e nas falsas palavras se condoia. Meu Pai desconfiado era pra poucos sorrisos, e eu passava pela sala:
- Mãe a senhora não vai servir o arroz doce? Ela se fazia de surda, e eu insistia:
- Mãe cadê o arroz doce, estou com fome!
- Mãe a senhora vai ou não vai servir o arroz doce? Maldita hora em que insisti tanto em pedir aquele arroz doce!!
O pessoal também passou a pedir o tal arroz doce, minha Mãe sem alternativas trouxe o caldeirão e todos se serviram, mas assim que a última visita fez a curva do estradão ouvi meu Pai me chamando já com o chicote ameaçando, me agarrou pela orelha e me conduziu até a sala, no chão lá estava o caldeirão de arroz doce:
- Meu filho! Coma arroz doce!
- Eu já comi arroz doce, não quero mais!
- Hoje você vai comer para aprender e não esquecer que quando tiver visitas que você não fique pedindo comida tão insistentemente, nós é que sabemos quando devemos ou não devemos servir o que comer!
Ouvindo e sentindo o estalo do chicote muito próximo do meu corpo, amendrontei, desesperadamente comecei a engolir a toda pressa o arroz doce! Das vezes olhava para os meus pais e implorava que não mais conseguia engolir, mas tudo em vão, mais ameaças, mais puxões de orelha, forçado fui comendo, engolindo, aquilo estava me sufocando...
Quando num repente me pus a vomitar, minha Mãe acudindo me livrou daquele suplício, apesar dos protestos do meu Pai que insistia que eu deveria comer mais pra da lição nunca esquecer! Saindo da casa, vomitei outras tantas vezes, me senti fraco, um tanto atordoado, meus Pais arrependendo do que fizeram me levaram para o quarto e a noite toda ficaram em cuidados e pedidos de desculpas.
Naquele ano terminado a safra da cana de açúcar, a moça e a sua família se mudaram para uma cidade do estado de São Paulo, mudaram talvez motivados pelo acontecido, mudaram talvez porque as más línguas não cessavam de dizer que a moça fazia até macumba desejando a morte da patroa pra ocupar o seu lugar, mudaram talvez para evitar aborrecimentos futuros... Mudaram talvez porque...
Outras vezes fizeram o tal arroz doce, mas por mais que minha Mãe insistisse e agradasse, tentava até colocar na minha boca, aquilo me enfastiava, repugnava, dava ânsias de vômitos. Aquela foi a última vez que comi arroz doce, ainda hoje ao me lembrar do acontecido um repentino mal estar de mim se apodera...