A CURA
A cura
A clínica de ortopedia era um pouco distante de sua casa. Aristotelina ia de táxi, e voltava de táxi. Aquelas sessões de fisioterapia eram chatérrimas e ela não tinha sentido nenhuma melhora. As dores continuavam e a dificuldade para mover a perna esquerda era enorme.
Todos diziam que com o tempo ela voltaria a ficar boa. O médico tinha sido objetivo ao dar o diagnóstico: - Cirurgia. Não tinha outra opção. Cheia de medo, ela nem ousava pronunciar a palavra: - Cirurgia. Resolveu pela fisioterapia. Sabia que estava enganando a si mesma, mas.
Não faria nenhuma cirurgia. Já tinha uma coleção delas pelo corpo. Três hérnias no abdômen retiradas em cirurgias diferentes, duas cesarianas, colocação de duas próteses nos joelhos, cirurgia de catarata, cirurgia para implantar quatro pontes de safena, cirurgia para reduzir os seios, cirurgia de remoção de amígdalas, cirurgia para retirar uma gravidez tubária, e outras que nem se lembrava. Hérnia no disco da coluna? Ia ficar sem cirurgia, não aguentava mais ser internada, anestesiada, cortada, e depois passar pelo pós-operatório. Resolveu dar um basta.
As filhas não foram contra nem a favor, pois sabiam que ela já estava cansada de tanto medico, exame, hospital, e cirurgia. Ela tomava quase dezesseis comprimidos por dia. Pressão alta, colesterol alto, diabetes, catarata, e uma infinidade de pequenas enfermidades que a levavam a consumir muito remédio. Parte de sua renda mensal era para pagar o plano de saúde (caríssimo devido a sua idade 82 anos), e comprar remédios. A sua sorte é que tinha bons rendimentos, provenientes da pensão de seus três maridos, sua aposentadoria, e o aluguel de alguns imóveis que adquirira durante sua vida.
A cura para a hérnia de disco era cirúrgica segundo o diagnóstico médico, mas ela insistia em não ser operada. Continuou na fisioterapia, meio desanimada, mas teimando em não voltar para um hospital. Aristotelina era muito religiosa e frequentava desde a juventude um centro espírita kardecista. Conhecia toda a doutrina e acreditava que tudo na vida correspondia a uma ação e reação. Na luta que enfrentara contra tantas doenças, desenvolvera muita resignação e pacientemente recebia os desígnios de Deus. Tinha a saúde frágil, mas uma fé inabalável. Participava de cursos, palestras e obras de caridade na comunidade. Gostava muito de bordar e fazer tricô e suas mãos ágeis e úteis estavam sempre ocupadas preparando belíssimos enxovais para crianças carentes. Fazia tudo com muito amor, quando lhe perguntava o que ganhava com isso, ela não respondia, e trocava de assunto.
Dois meses depois de ter iniciado a fisioterapia, voltou ao medico. Ela tinha feito novos exames e ele tentou pressioná-la a fazer a retirada da hérnia através de uma cirurgia. Ela voltou para casa, telefonou para a filha caçula e continuou firme dizendo que não iria fazer a cirurgia. Naquela noite, Aristotelina precisou tomar uma medicação muito forte para cessar as dores. Antes de pegar no sono, orou fervorosamente e pediu a falange dos médicos espirituais que lhe fizessem uma cirurgia espiritual e a liberassem daquele incômodo. Tão grande era seu desespero que acreditava que só mesmo Deus e os espíritos de luz poderiam conceder-lhe esta graça. Ela teve um sono, muito estranho. Acordou no meio da noite, levantou-se foi ao banheiro, tornou a deitar, dormiu, e tornou a sonhar. Ela era uma jovem escrava egípcia, trabalhava sob o domínio do açoite de um feitor. Carregava pedras para a construção da grande pirâmide. Sentia-se cansada, com vontade de parar, mas o homem maldito olhava a todos com desprezo e ódio, e fazia-os trabalhar sem descanso. Ela sentiu uma pontada na altura dos quadris, como se um dos rins estivesse se partindo e desmaiou. O homem começou a acoitá-la para que ela se levantasse. Ela ainda tentou, mas não conseguiu uma enorme pedra, começou a rolar, e os esmagou fatalmente. Ao acordar pela manhã, sentia um leve formigamento no local onde antes só tinha dores. Na parte da tarde, ela conseguiu ir caminhando lentamente até o centro espírita onde assistia aos trabalhos mediúnicos na mesa. Durante a sessão, um dos médiuns, incorporou uma entidade muito calma, que se dirigiu a Aristotelina com palavras que eram uma resposta ao que ela tinha sonhado. – A senhora conheceu a verdade de outra vida, sua condição de escrava, seu sofrimento, sua morte. As dores desta vida eram reflexo do passado. Só voltarás a sentir dores novamente, se quiser. Pois recebeste do Pai Altíssimo a graça da cura. Aristotelina ficou surpresa, pois não tinha contado o seu sonho para ninguém.
Voltou para casa muito confiante. Sentiu o formigamento no quadril por mais alguns dias e depois não sentiu mais nada. Seis meses depois Aristotelina voltou ao ortopedista e ele lhe pediu novos exames. Ela fez e levou-os para o medico que ficou surpreso. Aristotelina estava curada. Dez anos se passaram, finalmente Aristotelina fez sua grande viagem. Estava calma, com uma fisionomia serena, a filha caçula a encontrou ainda no leito dormindo, parecia que tinha um leve sorriso.