MEUS INSTANTES DE SEQUESTRADOR E ASSALTANTE
Moro perto da linha do equador. Sol abrasante. Aqui o calor desrespeita as outras três estações do ano. Bem que a vestimenta completa, para homens, deveria ser: bermuda, camiseta e sandália japonesa! Pra mulheres, então, nem deveria ser!... Que ficassem à vontade, o sol lhes espiando, lhes tostando e embelezando a pele... Baita saudade do tempo em que convivíamos, respeitosamente, despidos em nossas tribos! Pareciam iguais, hidratando-se com o suor uns dos outros, nossos ancestrais, nossos índios, nossos animais...
Minha sorte é que viajo por todos os recantos do país, reorganizando serviços nas filiais de minha empresa. Vez ou outra, até necessito de agasalho pra não virar gelo... Admirem-se ! No lugar onde eu moro, poucos sabem o que é agasalho!... Comprei um pra minha mulher, faz dez anos, ainda está empacotado com o mesmo papel de presente da época. Nem precisa me perguntar se está fora de moda!... Mas, vamos retomar o assunto. Eu disse que viajo por outros rincões, outras regiões...
Quando termino o trabalho numa filial, sempre volto ao ponto de partida, para entregar ou preparar relatórios, dar sinal de vida em casa e – nem desarrumo as malas – voo pra outro quadrante em nova missão. Dizem que moro num avião. Sou um “sem-teto no ar”.
Acabo de descobrir que ando meio sem sorte: mudou o chefe da minha unidade! Agora é um gaúcho quem vai escolher meu destino (de viagem, é claro!) e saber por onde ando e quando devo partir e retornar. Garanto que vou aprender o idioma que ele fala, chê!
Pra começo de história, ele ordena que todos os seus comandados passem a usar paletó durante o expediente. Eu, sim, sou um dos...
– Mas, chefe, nós não temos contato com o público. Nosso único trabalho é elaborar/criticar relatórios e receber instruções para novas missões. Nas ruas que nos trazem até aqui, o calor é infernal!... Dispense-nos do uso de paletó, pelo menos na estação mais quente !... – Pleiteei, imaginando estar falando com gente mais acessível. Ora, qual o gaúcho que não é acessível e extremamente educado?!... Ledo engano!
– Manda quem pode e obedece quem tem juízo, chê! – Foi a resposta que me deu, sorridente. Entendi, a princípio, que era de brincadeira, mas, pelo pigarrear, logo deduzi que ele me impôs, garganta a dentro, sua inquebrantável autoridade. A resposta grosseira me contrariou um pouco, mas preferi perder a causa do que a cabeça. Obedeci-o com restrições, porque me ocorreu uma ideia:
– “Trago um paletó, uso-o somente durante o expediente e, depois, guardo-o no armário”.
Deu certo. Quando sujo, ou machucado, levo-o para casa, debaixo do braço, e o troco. Beleza ! Os outros colegas me seguem. Melhor ainda. Uma desobediência compartilhada.
Embora minhas estadas pela unidade regional sejam esporádicas, tenho que trocar de paletó. Especialmente agora, fim de ano, que a gente expurga as tralhas ou lava o que bem merece. Somente trancado no armário, em pouco tempo já fica cheirando a bolor. Dobro-o, até poder empacotá-lo num envelope de quase dois palmos por um palmo e meio. Envelope pardo recebido de um banco que mo enviara com algumas publicações sobre finanças. O nome do banco impresso em caixa-alta na sua extremidade superior esquerda.
Capricho na embalagem. Ninguém, nem o chefe, sabe o que nela se contém. Se o chefe souber desse procedimento, eu estou frito! Ponho o envelope debaixo do braço, sem me preocupar em esconder o nome do banco. Poderia evitar – quem sabe! – alguns olhares maliciosos.
Acaba o expediente na sexta-feira à tardinha. Último do ano. Todo mundo se despedindo com votos recíprocos de Feliz Ano-Novo...
Costumeiramente, faço o trajeto, de casa ao trabalho, e vice-versa, em transporte coletivo. Nesse dia, um colega me concede carona até a metade do caminho. De onde ele me deixar, pra chegar à minha casa é só um pulo. Saímos – aqui, ali –, queixando-nos do engarrafamento. Despedimo-nos, oito quilômetros depois, numa rua mais ou menos movimentada. – Upa! Com mais quinze minutos de ônibus devo chegar ao meu destino.
No ponto de espera – local pra mim meio desconhecido – umas cinco pessoas também aguardam ônibus para lugares diversos. Fico ali, em pé, na calçada, atento para sinalizar a parada do coletivo que me serve.
Um sujeito, mais forte do que eu (ou menos fraco), se aproxima e, como se tivesse alguma intimidade comigo, cochicha ao meu ouvido:
– “Vai andando e deixa esse pacote sobre o para-choque daquele “fusquinha” vermelho que está ali” – disse, apontando o veículo, sorrindo, pra disfarçar, e, ao mesmo tempo, abrindo o fecho éclair de uma bolsa onde brilhava e somente cabia um revólver calibre 38.
O “fusquinha” está a uns cinco ou seis metros de nós. O interesse do meu suposto e inconfiável “amigo” é a bolada de dinheiro que ele imagina estar estirada dentro do envelope. O nome e logomarca do banco também, com certeza, o atraem.
Põe a mão no meu ombro e puxa uma conversa inventada, da qual nada entendo. Partimos, os dois. Um seguindo o passo lento do outro. Eu, disposto a largar o pacote no local indicado e disparar em busca de um táxi. Ele, disposto a pegar o pacote e/ou também disparar (...).
– “Preciso ficar o mais distante possível da mira desse maluco” – penso, já apavorado. Minhas pernas, acho que trêmulas, parecem pesar o dobro do meu corpo. Arrasto-as, acompanhando o meio-fio da calçada. Ele, do meu lado direito. Ninguém, ali, desconfia do que esteja acontecendo.
Aí,
lentamente, do meu lado esquerdo, um micro-ônibus chega quase parando!...
Percebo que ninguém vai subir, mas uma senhora, durázia, se prepara para descer. Dou mais uma passada e nem deixo o veículo parar totalmente...
Qual um serelepe, de um só impulso, jogo-me para o interior do veículo e grito para o motorista:
“FECHA A PORTA, QUE É UM ASSALTO ! ! ! ”
Corro para o fundo do carro, como que em busca de um esconderijo...
A pobre idosa que ia descer, insiste para que o motorista lhe deixe na próxima parada. Parece-me surda. O motorista, dirigindo de uma maneira tensa, diz “não!” e tenta gesticular, explicando tratar-se de um assalto.
Percebo que os passageiros também estão em sobrosso, uns, já de bolsa na mão, aguardando minha investida...
Sinto necessidade de esclarecer para todos, em voz alta e num só momento, que não sou assaltante e que as circunstâncias me levaram a pronunciar uma frase imperativa e de efeito dúbio. Não vi outra forma de obrigar o motorista a fechar a porta – impedindo a subida do verdadeiro assaltante – e prosseguir viagem imediatamente.
Deixo meu pronunciamento para depois. A pobre idosa está muito nervosa e eu preciso ir até lá acalmá-la. Fui.
– Se afaste de mim! Se afaste de mim!... Olhe aqui a minha bolsa. Está vazia!... Pare o ônibus, motorista, eu quero saltar!... – Grita a pobre senhora, histérica.
Tentando dizer a ela que o assaltante era o outro, que ficou lá na calçada do ponto onde eu estava, o motorista entendeu, sentiu-se repentinamente aliviado, e parou o veículo para atender à sua passageira.
Dou a garantia de que a levarei de táxi, evitando, assim, que volte, a pé, para o local onde deveria ter saltado. O motorista ouve, concorda com minha pretensão e agradece. Mas a idosa parece que é surda mesmo, quer ver?!...
O micro-ônibus se vai. Fico com a velhinha na calçada, com a mão em seu ombro (assaltante pode tudo!) e chamo um táxi. Veio rápido.
Abro a porta, do lado da calçada, para que a velhinha entre. De repente, ela solta um grito estridente:
- “SOCORRO ! . . . SOCORRO ! . . . ESTÃO ME SEQUESTRANDO ! . . .”
( . . . )
Ah, caro leitor, este é um daqueles dias em que tudo acontece ! Acho que dobrei meu paletó pelo avesso !
Escrevi este conto daqui da 19ª Delegacia do Departamento de Roubos e Furtos, enquanto aguardo o Delegado para eu tentar me explicar.
Desculpe-me, mas não dá pra continuar ! Hoje eu estou tão de azar, que você poderá até pensar que quero ROUBAR o seu tempo ! . . .
Só lhe prometo uma coisa:
Escrevi este conto daqui da 19ª Delegacia do Departamento de Roubos e Furtos, enquanto aguardo o Delegado para eu tentar me explicar.
Desculpe-me, mas não dá pra continuar ! Hoje eu estou tão de azar, que você poderá até pensar que quero ROUBAR o seu tempo ! . . .
Só lhe prometo uma coisa:
- “SE EU ESCAPAR DESTA BRAVATA , A PARTIR DE SEGUNDA-FEIRA ESTAREI OBEDECENDO AO MEU CHEFE E
- PASMEM ! -
DE PALETÓ E GRAVATA.
Recife, 30/dezembro/2005
(Fernando A Freire)