Corinthiano é igual a Juiz?

Estive naquela cidade para atender a um favor do meu pai. Ele me ligou num sábado à noite pedindo para que eu o representasse no enterro de um estimado amigo, o famoso, porém anônimo, Eustáquio Bezerra Pereira, um dos maiores árbitros de futebol que o Brasil nunca imaginou ter, segundo ele, e nem fez questão de querer saber.

Com os olhos voltados para o passado, papai recordava o tempo em que ambos atuavam nos gramados do interior. Ele como ponta de lança de vários times sem muita expressão e o juiz Eustáquio, trilando o apito a favor, às vezes contra, às vezes comprado, às vezes vendido, às vezes descarado, frente às jogadas e aos gols do meu querido pai.

Apesar de muitos erros, dolosos e culposos, os dois eram amigos, e ele sentia o fato da idade e da diabetes o impedirem de dar adeus ao seu amigo meio inimigo mais íntimo.

Embarquei no primeiro trem para Miracema do Norte, uma daquelas cidadezinhas que a gente nunca ouviu falar e só vê na televisão, de uma avenida só, de uma igreja só, de uma escola só, com três mil habitantes, quermesse no dia da padroeira, sítios e chácaras no entorno, mas com um estádio de futebol para dois times.

Essa era uma particularidade interessante. Havia dois times de futebol em uma cidade onde cinema não existia e o único bordel ficava ao lado da única escola. E o que era pior: ambos tinham uma rivalidade altíssima, digna de um Palmeiras e Corinthians. Tanto que esse último dava o nome a um dos times da cidade: O Corinthians do Norte.

O outro era o Rosca Torta Futebol Clube. Seus torcedores, simpatizantes de uma família que fundou a única padaria de lá, ostentavam com orgulho as cores verde, vermelha e branca, enquanto que os corinthianos do norte faziam questão de andar sempre de preto e não comiam alface com beterraba alegando enjoo.

O Estádio levava o nome do avó do Prefeito. Mas foi o apelido do finado e pouco estimado morador daquelas paragens que pegou, calcado no aumentativo, embora a arena tivesse as medidas mínimas de um campo oficial e a lotação máxima para apenas um quarto da população. Miracema do norte era conhecida na região por ter o estádio municipal Manuel dos Anjos, o Capetão.

O Estádio ficava encravado no final de uma rua de paralelepípedos, do lado leste da Igreja matriz, pois o Prefeito queria aproveitar a rua pavimentada para não gastar dinheiro com asfalto. Por puro capricho logístico, e não por sacanagem, o Capetão acabou sendo construído junto a uma encosta de morro, onde no alto ficava o único cemitério da cidade.

Apesar da taxa de natalidade não ser alta, a área útil dos túmulos esgotou-se rapidamente, pois a população não tinha costume de ficar desenterrado quem já tinha ido para debaixo da terra. Assim, foi necessária uma ação rápida e ousada da Prefeitura, que decidiu expandir o Campo Santo até as proximidades com a arquibancada principal do Capetão, delimitando-a com um muro de alvenaria e alguns pinheiros, que dobravam facilmente com uma simples lufada de vento ou aos gritos de gol.

Para os incomodados, o Prefeito argüia que não haveria problemas, pois o campo e a arquibancada ficavam abaixo do cemitério, e tudo era concretado, o que impossibilitava o morto de ser enterrado hoje e aparecer amanhã dentro do campo, ou, para os mais piadistas, parar direto no Capetão.

Só não explicou como seria se um enterro ocorresse em dia de jogo.

E talvez, aí sim, por sacanagem da morte e não por capricho do destino, o enterro do Juiz Eustáquio foi marcado para o mesmo dia e horário da final do campeonato da região envolvendo justamente o Rosca Torta e o Corinthians do Norte.

Lembro-me que houve um certo mal estar entre a viúva do falecido e os agentes funerários durante o velório. Ela queria que a hora do enterro fosse alterada para depois do jogo, mas como o único padre da cidade estava doente e correndo o sério risco de ser o próximo a acompanhar o Juiz Eustáquio para o lado de lá, o padre da cidade vizinha só tinha horário livre justamente na hora do jogo. Ou enterrava naquela hora ou se comprava mais vela para acender ao lado do caixão durante o velório.

Com muito custo a viúva aceitou enterrar o dito cujo naquele horário mesmo. O padre chegou com atraso para a última oração dentro da capela do Cemitério, pois, segundo suas próprias palavras, havia um trânsito infernal de bicicletas, cavalos e carros de boi que seguiam para o Capetão.

Depois que abotoaram o paletó de madeira do Juiz, a viúva fez questão de abrir uma bandeira do Corinthians de S. Paulo, e não do Corinthians do Norte, por sobre o caixão: “Ele me fez prometer que iria ser enterrado com a bandeira do segundo amor de sua vida.”, soluçou a viúva ao ver a cara de desagravo do padre e de alguns presentes que torciam para o Rosca Torta.

Como eu não torcia para nenhum dos times e estava ali representando o meu pai, ofereci-me para carregar uma das alças do caixão. Durante o trajeto da capela até o túmulo do falecido, o cortejo seguiu em silêncio. E não porque os enlutados estavam tristes: o som dos fogos de artifícios espocando no céu não nos permitia falar ou rezar, apenas seguir resignados ao lado do caixão tentando abstrair as comemorações que se seguiam no estádio.

Já próximo ao túmulo, a torcida do Rosca Torta, que ocupava a arquibancada ao lado do cemitério, fez questão de se fazer ouvir tentado intimidar a torcida adversária, cantado em alto, claro e bom som:

“ Doutor, eu não me engano, filho da puta é corinthiano”.

“ Chora corinthiano, chora corinthiano, pega sua bandeira, enfia no cu e vai embora.”

A viúva, com ares de ofendida, tratou de puxar a bandeira do corinthians desfraldada em cima do caixão e a dobrou singelamente, colocando o símbolo do time virado para baixo, como se tentasse esconder para quem torcia o finado.

Ao mesmo tempo em que o caixão descia à cova, o time do Rosca Torta entrava em campo. O entusiasmo transcendia da arquibancada, e em meio a gritos, assobios e nova saraivada de fogos de artifício, o coro da torcida dava o tom sonoro do enterro que se seguia de forma lastimosa:

“Bota pra fude! Bota pra fude!”

A meia dúzia de enlutados presentes, fora o padre, tentava disfarçar o constrangimento que se seguia de várias maneiras. Uns tossiam sem vontade, outros olhavam para cima, enquanto que os coveiros jogavam a terra sobre o caixão com uma rapidez impressionante, ávidos para não perderem o início do jogo.

Enquanto isso, a torcida do Rosca Torta fazia questão de recepcionar com amor e carinho o principal jogador da equipe adversária. Talvez aquele jogador nunca tivesse imaginado que o seu nome fora dado em homenagem ao ex-juiz que agora estava sendo enterrado sem pompa alguma:

“ Eustáquio, viado! Eustáquio, viado!”

“ Ei, Eustáquio, vai tomar no cu!”

Já era mais do que tempo do enterro terminar. Mas o padre, cioso do seu ofício, quis dizer algumas palavras em memória do morto e já enterrado juiz. Ouviu-se na seqüência o apito do juiz do jogo dando início a partida, e um ufanar de vozes estridentes.

E como por milagre, depois que o padre soltou um “Nosso saudoso Eustáquio”, um silêncio fez-se ouvir por todo o cemitério. Até o som do bumbo e de uma corneta estridente silenciaram-se. As duas torcidas calaram-se. O padre deu uma parada na sua oratória e voltou-se para o estádio. Exultante, abriu um sorriso largo a todos os presentes, como que nos confortando depois de tanto dissabores até aquele momento, acreditando que Deus tivesse operado um dos seus milagres na terra calando os torcedores.

Pobre padre. Não era Deus quem estava fazendo um milagre naquele momento, mas sim o Tuiuzinho, o atacante do Rosca Torta, pretinho, magrinho e com cabelo moicano, que havia desarmado o atacante do outro time dentro da própria área, arrancado pela lateral, driblando um, cortado o outro, passando por um, dois, três, cinco, quase todo o time do corinthians do norte, numa jogada épica, sensacional, com direito a balãozinho, drible da vaca e canetinha.

O Capetão calou-se frente à habilidade daquele jogador. Todos estavam atentos ao lance, cada vez mais angustiosos com a aproximação de Tuiuzinho da área adversária, que numa jogada de efeito driblou o goleiro, invadiu a pequena área, armou o chute... E foi derrubado pelo zagueiro.

O tempo daquela jogada sensacional, o tempo do silêncio das torcidas, durou o tempo exato do êxtase do padre, que ao tentar falar suas palavras de apreço e consideração ao finado foi interrompido com a fúria da torcida do Rosca Torta, inconformada com o juiz, do jogo, que não havia marcado um pênalti legitimo, e por isso gritava:

“Juiz Ladrão! Cuzão! Filho da Puta! Vendido! Arrombado do caralho! Vai pro inferno seu desgraçado! Sua mãe tá na zona com o capeta, seu corno!”

Aquilo foi a gota d´água, ou melhor, a pá de cal sobre a memória do finado juiz. O padre olhou para o céu e abriu os braços no melhor estilo Daquele que disse uma vez: “Pai, perdoa-os, porque eles não sabem o que fazem”. Benzeu a todos e saiu rapidinho de cena.

A viúva voltou a chorar copiosamente, sendo amparada por alguns parentes que tentavam esconder sorrisinhos cínicos no canto da boca. E eu permaneci ainda por ali, inerte, tentando inventar alguma coisa grandiosa para dizer sobre o enterro quando encontrasse o meu pai.

Foi então que uma cabeça branca apareceu por sobre o muro que separava a arquibancada do cemitério. Sem muita cerimônia, uma boca banguela e alcoolizada gritou para mim perguntando quem tinha morrido. Eu respondi que era o Juiz de Futebol Eustáquio Bezerra Pereira.

“ Não sei quem é, mas já vai tarde.” – me disse aquele homem – “ Juiz bom é juiz morto!”

E foi mais ou menos isso o que eu disse para o meu pai quando ele me perguntou como tinha sido o enterro. Justo, eu respondi, um enterro justo. Assim como um bom juiz de futebol é.

Marcelo Almeida do Nascimento

dez/11